terça-feira, 22 de agosto de 2006

Uma obra singular e plural

(Posfácio à edição de bolso de “Crônicas da vida operária”, de Roniwalter Jatobá

Flávio Aguiar*

Reler este Crônicas da vida operária vinte, quase trinta anos depois é como mergulhar no nosso mundo particular das madalenas de Proust. Todo um universo de lembranças, umas mais presentes, outras que estavam perdidas, vem à tona. É um mundo envolvente de noites em claro, de dias sombrios, de medos e coragem, suores frios ou ardentes, gritos lancinantes, viagens sem volta, tempo parado, espaços vertiginosos.

Era o mundo da ditadura, aquele que nunca ia terminar, era irreversível, aquele que proclamava: “o Brasil era o país do futuro; agora o futuro chegou”. E o futuro era aquilo, aquela mistura de horror infinito com uma capacidade de resistência sempre em teste.

Poucas vezes na história do Brasil a vida humana foi tão degradada. Isso não se deu apenas nas câmaras de tortura e nos assassinatos ostensivos ou secretos; na censura ao jornalismo e às artes, na selvageria das delações nas universidades e escolas, e assim por diante. Havia também a degradação do cotidiano, a institucionalização da mentira e da fraude como estilo de vida. Foi assim na proclamação daquele “Brasil grande”, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, lemas que sintetizavam a implantação do delírio coletivo - e muitas vezes consentido - em lugar da percepção e do sonho.

Este livro captou este momento, olhando desde logo os seus escombros, as vidas em estado de pobreza, com dignidade ou em ruínas, que davam o ritmo secreto daquele Brasil, o não-contado, o descontado. É uma obra singular e plural ao mesmo tempo. É singular, pois postula a existência de “uma vida operária” a relatar. É plural, pois esta vida, que é uma, é relatada da pluralidade dos pontos de vista de suas múltiplas narrações, sempre em primeira pessoa.

Esse ponto de vista da primeira pessoa tem especial significação na obra. É o testemunho dessa multiplicação dos olhares. Roniwalter evita o engano - tantas vezes cometido - de querer enfeixar a multiplicidade possível num único olhar - aquele que seria “o justo, amplo e correto”, diante da alienação parcial ou total dos demais.

Roniwalter, com a serenidade de seu jeito de pessoa, olha essa variação de olhares, e os reconstrói através de sua própria lembrança. E o faz com uma prosa simples, mas não simplória; chã, mas penetrante, seguindo os meandros das esperanças parcas e desilusões muitas de seus personagens.

Na época esse tipo de literatura enfrentou um paredão de preconceitos. Houve crítica que o denunciasse como populista, naturalismo requentado, prosa referencial, superada, diluidora etc. Embaida por seu próprio modismo formalista, faltava a essa crítica a sutileza necessária para perceber que ali medravam aspectos criadores insuspeitos, como o de debuxar vozes antes quase inaudíveis no terreno literário, a não ser pelo viés repetido do pitoresco ou da falta de educação formal, as vozes do mundo do trabalho.

A literatura ouvia, como radar, aquilo que a ditadura silenciava. Criou-se assim um estilo peculiar de época, algo entre o confessional e o testemunhal. A confissão é uma palavra intermediária. Pertence ao domínio do privado; trazida para a literatura, ela expõe a alma privada no domínio público.

Com isso, na moldura daquele tempo, a literatura dá testemunho: atesta, em primeiro lugar, que aquelas vozes existem e merecem ser escutadas. Essa literatura afirma portanto a palavra do escritor como herdeira de um patrimônio coletivo, ainda que original em sua individualidade.

Acho que este é um dos principais legados de Roniwalter e os de sua geração: o testemunho de que aqueles tempos dilacerantes não dilaceraram de todo os espíritos.

De quebra, se perscrutar bem, quem sabe o leitor e a leitora não verão passar em algum refolho, por entre as migrações, despejos, grandezas e misérias dessa “vida operária” de antanho, a sombra de um presidente da República.


* Flávio Aguiar, professor de literatura brasileira da USP, é autor de Anita, prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro na categoria romance em 2000 e de A comédia nacional no teatro de José de Alencar, prêmio Jabuti na categoria ensaio em 1984.

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