segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Relatos da condição humana


Antologias de Roniwalter Jatobá e Jorge Miguel Marinho apresentam tema em comum
Henrique Marques - Samyn*
Jornal do Brasil, 10 de outubro de 2009



A Nova Alexandria tem publicado, em sua coleção Obras Antológicas, coletâneas de alguns autores representativos. Os volumes editados até o momento são assinados por nomes como Silviano Santiago, Domingos Pellegrini e Solano Trindade – este, o único poeta numa série de livros que vem privilegiando a narrativa curta. Seguindo essa tendência, dois reconhecidos cultores do gênero têm seus textos reunidos em antologias incorporadas à coleção: Roniwalter Jatobá e Jorge Miguel Marinho.
Mineiro radicado em São Paulo desde 1970, Jatobá inicia sua trajetória literária com Sabor de química (1977); é ele quem “praticamente instaura a literatura proletária brasileira”, como enfatiza Luiz Ruffato, organizador e prefaciador dos Contos antológicos de Roniwalter Jatobá. Já os textos de Jorge Miguel Marinho, carioca também radicado em São Paulo que alcança destaque sobretudo a partir de Escarcéu dos corpos (1984), são comumente aproximados da literatura fantástica – rótulo que, ainda que não de todo improcedente, pode suscitar leituras reducionistas que ofuscam a riqueza lírica e temática de sua obra. De fato, uma leitura mais aprofundada revela que as produções literárias de Jatobá e Marinho não são propriamente opostas – e têm em comum o essencial da melhor literatura.
O texto de Roniwalter Jatobá, construído predominantemente por frases curtas, reflete na forma a matéria de seu lirismo: assim como sua dicção é algo fragmentária, repleta de rupturas que acentuam o tom seco e duro que perpassa a narrativa, os contos enfocam vidas quase sempre despedaçadas pela pobreza, esmagadas pelo árduo trabalho que reduz as pessoas à sua força produtiva. É justamente por construir sua obra a partir desse cenário tão asfixiante, mas sem ceder à opção de tecer uma narrativa que, aderindo a ele, reduza-se a espelhá-lo – o que decerto produziria o gesto pleonástico que, embora denunciador, tende ao estereótipo – que a literatura de Roniwalter Jatobá é prenhe de humanismo: seus personagens sempre resistem, de algum modo, à reificação; são figuras que, conquanto dilaceradas, orientam-se pela busca de uma dignidade que, embora não raro pareça inalcançável, sabem fazer parte de si. A imagem do trabalhador pobre, deslocado em meio à massa urbana, é representativa do tipo de questionamento que motiva o escritor: embora seja ele, o trabalhador, um dos principais responsáveis por mover a colossal máquina urbana, essa em reação o esmaga e asfixia, reduzindo-o a uma espécie de fantasma – a uma criatura anômala e anônima à qual se impõe o desafio de resgatar sua própria humanidade. As muitas formas dessa luta, não raro trágica, constituem a matéria bruta da qual Roniwalter Jatobá extrai o lirismo de seu contos, cuja qualidade é bem representada pela seleção de Ruffato.
A compaixão é uma marca do texto de Jatobá

À seca dicção de Jatobá contrapõe-se o texto de Jorge Miguel Marinho: encontramos um descritivismo que, não raro, remete ao barroco; excesso que em momento algum tangencia o preciosismo, servindo por outro lado a propósitos estéticos muito definidos. O mundo que emerge nos contos de Marinho, como demonstram os presentes em seus Contos antológicos, usualmente não obedece aos parâmetros naturalistas predominantes na literatura brasileira; verifica-se frequentemente um desvio que, ao instaurar o fantástico, desmascara arbitrariedades e mecanismos de poder que subrepticiamente operam no cotidiano. Nem sempre ressaltado, esse aspecto da obra de Jorge Miguel Marinho revela um autor fortemente político; em sua literatura, o elemento fantástico não surge como um fim, mas como um instrumento empregado para a construção de alegorias. Em outras palavras: no texto de Marinho, a fantasia não constitui uma negação do real, sendo de fato uma forma de reafirmá-lo em seus contrastes – sobretudo no que tange à sociedade, cujas fraturas são assim denunciadas. Perceba-se, a propósito, que essa é uma literatura em que o “desviante” – ou seja, aquele que sofre a ação do fantástico – comumente o é num sentido social, seja por sua posição à margem, seja pelo desafio que representa a algum tipo de norma; desse modo, a inversão do mundo apenas explicita uma inversão da ordem que a antecede.
Nenhum tour de force é, portanto, necessário para aproximar a obra de Roniwalter Jatobá dos textos de Jorge Miguel Marinho. Embora, à primeira vista, de um cotejo entre suas escritas possam emergir apenas as diferenças, o que os aproxima é algo muito mais fundamental: a profunda empatia com que se dedicam a tematizar a condição humana. A compaixão do texto de Marinho surge também na obra de Jatobá; as marginais figuras que povoam as páginas de Jatobá fazem-se igualmente presentes nos contos de Marinho – semelhanças que decorrem de uma preocupação humanista seminal em ambas as obras. Se, em última instância, é esse o tema de toda a grande literatura, não há dúvidas de que estamos aqui diante de dois grandes escritores.
* Henrique Marques - Samyn é doutorando em literatura comparada e autorde Esparsa poética (poemas)

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