Edmur Fonseca*
Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, uma cidade do Jequitinhonha mineiro. Nessa época, 1949, era um pequeno arraial, desmembrado só mais tarde de Itambacuri e um centro de prestação de serviços de uma economia rural, com os traços marcantes da tradição fundiária herdada do período colonial. Seus filhos trazem consigo as marcas profundas da mais autêntica mineiridade. Campanário tem entre seus filhos pelo menos duas figuras ilustres: Roniwalter Jatobá, jornalista e escritor de prestígio, e Schubert Magalhães, pioneiro do cinema novo no Estado. Ainda menino, Roniwalter foi viver na Bahia, transladando-se, ainda jovem, para São Paulo, onde deu início, com êxito, à carreira literária.
Edmur Fonseca - Para início de conversa: em que medida o escritor Roniwalter se sente influenciado por sua infância em Minas Gerais? Pode nos falar alguma coisa sobre seu nascimento, origem, classe, escolaridade?
Roniwalter Jatobá - Nasci em Campanário, Minas, à beira da rodovia Rio-Bahia, em 1949. Meus pais eram baianos, estavam na região desde o final da Segunda Guerra Mundial, quando buscaram o norte mineiro para tentar a sobrevivência. Eram tempos difíceis, época de desbravamento de uma inóspita região. Ali, criança, conheci as histórias em quadrinhos e o cinema. Quando começou a chegar o progresso, por exemplo o asfaltamento da Rio-Bahia, minha família voltou para o sertão baiano nas proximidades da cidade de Campo Formoso. E essa volta foi importante para mim. Vivendo na casa de um tio, entrei num colégio protestante para fazer o ginásio e, aí, a descoberta da literatura. Nunca me esqueço: os jovens, na grande maioria, brigavam para ver quem ia ler primeiro as novidades literárias que chegavam de Salvador. Havia ali um advogado e professor de geografia, Domingo Dantas, que colecionava livros autografados de autores brasileiros. Tinha todo mundo. Ele mandava buscar no Rio de Janeiro. Naquela época, e durante quatro anos, nos esbaldamos de ler Graciliano Ramos, José Lins do Rego e muita prosa americana. Em 1964, terminei o ginásio, mas meu pai não tinha condições de me enviar para Salvador para continuar os estudos. Com quinze anos, a minha perspectiva era trabalhar na roça ou ajudar meu pai, que possuía um velho caminhão. Naquele período da nossa vida, o Ford amarelo servia para meu pai comercializar produtos industrializados (açúcar, bebidas) e também permutá-los por feijão, farinha etc. Fui, então, dirigir o caminhão. Como dizem no sertão que o único guarda de trânsito existente ali são os jegues, que teimam em pastar no meio das estradas de terra, não precisei de habilitação. Fiquei, assim, nessas andanças por quase três anos. O trabalho era agradável e me sobrava muito tempo. Enquanto meu pai cuidava dos negócios nos pequenos lugarejos, eu lia. Foi aí que travei conhecimento com os textos de Dostoiévski, Gogol, Kafka e muitos outros.
Edmur Fonseca – Você começou como operário no ABC, e em seguida, na área gráfica da Editora Abril, quando se formou em jornalismo. De que maneira isso incidiu em seu pensamento político e ideológico e na sua própria literatura?
Roniwalter Jatobá - Depois de servir o Exército em Salvador, vim para São Paulo, em 1970. Aqui fui morar em São Miguel, na casa de uma família. Rodei a cidade inteira até que, um dia, consegui uma vaga de ajudante de almoxarifado na Karmann-Ghia, no ABC. Fiquei três anos empurrando carrinho cheio de peças para a produção. Em 1973, saí e entrei na Abril, como apontador de produção na gráfica. A partir daí, auxiliado pela empresa, fiz supletivo colegial e, depois, pude me formar em jornalismo. Foi na escola que comecei a escrever os primeiros trabalhos. Eram contos e, em todos eles, o cenário era a periferia paulistana ou os dramas dos migrantes na sua vinda. Virei, então, escritor e jornalista. Enquanto trabalhava em jornais que combatiam a ditadura militar, como Versus e Movimento, continuei a escrever. Aí, um dia, mandei um conto para a revista Ficção, no Rio, e outro para a Escrita, em São Paulo. Ganhei os dois prêmios e não parei mais.
Edmur Fonseca – Como se deu sua formação jornalística? E como escritor?
Roniwalter Jatobá - Fui redator e editor de inúmeras publicações, entre elas Nosso Século, Retrato do Brasil, Saúde, Boa Forma e Memória. Em livros, publiquei Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura, 1976); Crônicas da vida operária (Finalista do Prêmio Casa das Américas, 1978); Filhos do medo (1982); Juazeiro, guerra no sertão (1996); A crise do regime militar (1997); O pavão misterioso (Finalista do Prêmio Jabuti, 2000); O jovem Che Guevara (2004); Paragens (Finalista do Prêmio Jabuti, 2005); O jovem JK (2005); Viagem à montanha azul (2005); Rios sedentos (2006), além de diversos textos em antologias e da tradução de A Cavalaria Vermelha, de Isaac Babel (1986).
Edmur Fonseca – Se bem me lembro, você publicou até hoje nove livros, de Sabor de química a O jovem JK, abrangendo crônicas, novelas, contos, até a mistura de ficção com a história real. Sinceramente, você esteve seguro, desde o começo, de seus objetivos, de seus meios de escrever, de seu programa de vida.
Roniwalter Jatobá - Sou um escritor obcecado com o trabalho que me propus a fazer nos começo dos anos 1970, que é dar voz ao trabalhador em São Paulo, principalmente o migrante mineiro e nordestino que vive na metrópole. Pertenço à ala dos ficcionistas brasileiros ligados à realidade, e com o fito de comprovar a existência de uma temática nossa, brasileira, longe de esgotar-se. Escrevo com o que sou. Sou o que há de mim, apenas.
Edmur Fonseca – Depois da publicação do seu livro de estréia, que é de 1976, seus livros se sucedem com absoluta regularidade numa média aproximada de três anos. Esse será um indicador de absoluto equilíbrio emocional frente aos resultados de seu trabalho. Ou haverá alguma outra explicação para esse fenômeno?
Roniwalter Jatobá – Escrevo devagar. Sigo sempre o conselho de Otto Maria Carpeaux, que dizia que o estilo é a escolha do que deve ficar na página escrita e o que deve ser omitido. É a escolha entre o que deve perecer e o que deve sobreviver. Na literatura é preciso muita paciência até encontrar o tom e o ritmo certos. Um exemplo é a novela “Tiziu”, presente no livro Paragens. Como você sabe, tiziu é um pássaro que se urbanizou, vive de restos de comida nas grandes cidades. O título, na verdade, é simbólico. É a história de Agostinho, que depois de 25 anos em São Paulo volta à sua terra de origem. É a história de um homem que vive a dura e descarnada história vivida por milhões de brasileiros, aqueles que nascem e vivem bem longe até mesmo dos mínimos direitos de um cidadão, lutando duramente pela sobrevivência e sonhando sonhos que, embora pequenos, não têm qualquer chance de realização. O enredo, no entanto, é a volta. A volta para encontrar a si mesmo em um lugar que não é mais o mesmo. Veja o que acontece quando Édipo volta a Tebas, quando Orestes volta a Argos. Nos gregos, em toda literatura de ficção, o ser humano não quer voltar, mas volta. É empurrado para trás, para buscar a si mesmo, e o que encontra? O nada.
Edmur Fonseca – A partir dos conceitos mais recentes da lingüística moderna, você, que antes de tudo é um ficcionista, como distingue o autor de ficção, do historiador, do autor biográfico e o crítico? Ou ainda podem-se ler os textos sobre os jovens JK e Che Guevara como crônicas de duas juventudes ricas de aventuras e exemplos de vida.
Roniwalter Jatobá - Uma biografia pode, sim, ter um tom mais ficcional, desde que você não invente ou deturpe a vida do biografado. A coleção “Jovens sem fronteiras”, da qual faz parte os dois livros que escrevi – O jovem Che Guevara e O jovem JK -- tem como objetivo contar a infância e a adolescência de pessoas interessantes da história num caldeirão em que se misturam experiências de vida, fatos e, para torná-lo de agradável leitura, uma pitada de ficção. Para dizer a verdade, nunca tinha pensado em escrever um livro sobre Ernesto Guevara, o Che. Mas, a editora Nova Alexandria me convidou para escrevê-lo para a coleção que já havia enfocado o mesmo período de vida de John Lennon e Noel Rosa, ambos recriados com um toque ficcional. Foi o que fiz. Assim, a história do rapaz atormentado pela asma, que o deixava prostrado na cama, mas cheio de garra nos estudos e nos esportes, ganhou um toque de ficção e acho que vem agradando bastante aos jovens, sobretudo para aqueles que usam uma camiseta com a famosa imagem do Che e não sabem nada ou apenas que ele foi um herói em Cuba.
Edmur Fonseca – Certas páginas de O jovem JK e de O jovem Che Guevara lembram a tradição clássica dos romances biográficos. Unindo num mesmo contexto ficção e uma cuidadosa reconstituição histórica traça o papel apaixonante, de dois autênticos pioneiros. Transformadores, cada um a seu modo das respectivas sociedades de seu tempo, tanto no Brasil como em Cuba, pode-se dizer que se identifica, de algum modo com eles, como escritor e cidadão participante?
Roniwalter Jatobá – Sim, me considero um escritor do meu tempo. Participo ainda mais quando faço literatura. Um grande amigo meu, o poeta Arnaldo Xavier, já falecido, foi quem me deu uma boa definição dos meus livros sobre a classe proletária de São Paulo. “Se um extraterrestre chegasse a São Paulo, descesse em São Bernardo do Campo e quisesse saber como era o cotidiano nas fábricas do ABC nos anos 70, o único registro seria a sua literatura”, disse. Exageros de amigo à parte, também acho que ele revela por dentro o inferno da indústria automobilista do ABC, descrito por quem o conheceu como trabalhador; o inferno dos turnos de trabalho; o inferno da mais-valia que se transforma em lucros multinacionais e em danosos investimentos dos gringos na Amazônia; o inferno do facão (a ameaça permanente do corte, como instrumento de chantagem contra os que se recusam a fazer horas extras ou a trabalhar nos domingos). E tudo isso com o olhar atento a tudo que aprendi de literatura (e na fábrica), insuflando alma aos personagens, cinzelando seus rostos, criando suas identidades perdidas e sempre em busca da felicidade, que é supremo objetivo dos homens.
Edmur Fonseca - Os seus escritos, em geral, são o resultado de suas experiências e expectativas sobre a própria existência e a existência humana além de uma singular expectativa sobre a obra puramente literária. Nesse sentido, você é um escritor livre, sujeito apenas à expressão de seus valores em confronto com a sociedade. Minha pergunta: o que você pode dizer dos textos escritos sob encomenda? Esse é o caso da coleção “Os jovens sem fronteiras”, de perspectiva visivelmente didática. Ao escrever sobre JK e Guevara, quais as exigências fundamentais do editor? Há ou não a possibilidade da escrita em liberdade, que o que se espera de cada autor?
Roniwalter Jatobá - Durante a minha fase adulta, sempre sobrevivi de outra profissão, seja como operário no ABC ou jornalista na Editora Abril. Por isso, a literatura sempre foi campo de inteira liberdade, de escrever o que me viesse à mente, independente de gênero. As biografias, no entanto, foram feitas de encomenda. Livro de encomenda pode ser igual, ou melhor, do que qualquer um outro. Dostoievski, na Rússia, e Graciliano Ramos, no Brasil, escreveram sob encomenda. Ainda não escrevi ficção encomendada por editores porque dificilmente eles pediriam para escrever sobre a trágica vida brasileira. Assim, em qualquer gênero, basta eu ter vontade e inspiração que para ali segue o meu instinto do escritor. E acredito seriamente na literatura. O ato de ler poesia e prosa é uma das ocupações mais estimulantes e enriquecedoras do espírito humano. Para o escritor Mario Vargas Llosa, a literatura é uma atividade insubstituível para a formação de cidadãos na sociedade moderna e democrática. “Por essa razão, ela deveria ser semeada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas educacionais”, diz o escritor peruano. “Nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do sectarismo religioso ou político e do nacionalismo excludente do que esta verdade que sempre surge na grande literatura: todos são essencialmente iguais.”
* Edmur Fonseca, mineiro de Matozinhos, 81 anos, é jornalista e escritor
Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, uma cidade do Jequitinhonha mineiro. Nessa época, 1949, era um pequeno arraial, desmembrado só mais tarde de Itambacuri e um centro de prestação de serviços de uma economia rural, com os traços marcantes da tradição fundiária herdada do período colonial. Seus filhos trazem consigo as marcas profundas da mais autêntica mineiridade. Campanário tem entre seus filhos pelo menos duas figuras ilustres: Roniwalter Jatobá, jornalista e escritor de prestígio, e Schubert Magalhães, pioneiro do cinema novo no Estado. Ainda menino, Roniwalter foi viver na Bahia, transladando-se, ainda jovem, para São Paulo, onde deu início, com êxito, à carreira literária.
Edmur Fonseca - Para início de conversa: em que medida o escritor Roniwalter se sente influenciado por sua infância em Minas Gerais? Pode nos falar alguma coisa sobre seu nascimento, origem, classe, escolaridade?
Roniwalter Jatobá - Nasci em Campanário, Minas, à beira da rodovia Rio-Bahia, em 1949. Meus pais eram baianos, estavam na região desde o final da Segunda Guerra Mundial, quando buscaram o norte mineiro para tentar a sobrevivência. Eram tempos difíceis, época de desbravamento de uma inóspita região. Ali, criança, conheci as histórias em quadrinhos e o cinema. Quando começou a chegar o progresso, por exemplo o asfaltamento da Rio-Bahia, minha família voltou para o sertão baiano nas proximidades da cidade de Campo Formoso. E essa volta foi importante para mim. Vivendo na casa de um tio, entrei num colégio protestante para fazer o ginásio e, aí, a descoberta da literatura. Nunca me esqueço: os jovens, na grande maioria, brigavam para ver quem ia ler primeiro as novidades literárias que chegavam de Salvador. Havia ali um advogado e professor de geografia, Domingo Dantas, que colecionava livros autografados de autores brasileiros. Tinha todo mundo. Ele mandava buscar no Rio de Janeiro. Naquela época, e durante quatro anos, nos esbaldamos de ler Graciliano Ramos, José Lins do Rego e muita prosa americana. Em 1964, terminei o ginásio, mas meu pai não tinha condições de me enviar para Salvador para continuar os estudos. Com quinze anos, a minha perspectiva era trabalhar na roça ou ajudar meu pai, que possuía um velho caminhão. Naquele período da nossa vida, o Ford amarelo servia para meu pai comercializar produtos industrializados (açúcar, bebidas) e também permutá-los por feijão, farinha etc. Fui, então, dirigir o caminhão. Como dizem no sertão que o único guarda de trânsito existente ali são os jegues, que teimam em pastar no meio das estradas de terra, não precisei de habilitação. Fiquei, assim, nessas andanças por quase três anos. O trabalho era agradável e me sobrava muito tempo. Enquanto meu pai cuidava dos negócios nos pequenos lugarejos, eu lia. Foi aí que travei conhecimento com os textos de Dostoiévski, Gogol, Kafka e muitos outros.
Edmur Fonseca – Você começou como operário no ABC, e em seguida, na área gráfica da Editora Abril, quando se formou em jornalismo. De que maneira isso incidiu em seu pensamento político e ideológico e na sua própria literatura?
Roniwalter Jatobá - Depois de servir o Exército em Salvador, vim para São Paulo, em 1970. Aqui fui morar em São Miguel, na casa de uma família. Rodei a cidade inteira até que, um dia, consegui uma vaga de ajudante de almoxarifado na Karmann-Ghia, no ABC. Fiquei três anos empurrando carrinho cheio de peças para a produção. Em 1973, saí e entrei na Abril, como apontador de produção na gráfica. A partir daí, auxiliado pela empresa, fiz supletivo colegial e, depois, pude me formar em jornalismo. Foi na escola que comecei a escrever os primeiros trabalhos. Eram contos e, em todos eles, o cenário era a periferia paulistana ou os dramas dos migrantes na sua vinda. Virei, então, escritor e jornalista. Enquanto trabalhava em jornais que combatiam a ditadura militar, como Versus e Movimento, continuei a escrever. Aí, um dia, mandei um conto para a revista Ficção, no Rio, e outro para a Escrita, em São Paulo. Ganhei os dois prêmios e não parei mais.
Edmur Fonseca – Como se deu sua formação jornalística? E como escritor?
Roniwalter Jatobá - Fui redator e editor de inúmeras publicações, entre elas Nosso Século, Retrato do Brasil, Saúde, Boa Forma e Memória. Em livros, publiquei Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura, 1976); Crônicas da vida operária (Finalista do Prêmio Casa das Américas, 1978); Filhos do medo (1982); Juazeiro, guerra no sertão (1996); A crise do regime militar (1997); O pavão misterioso (Finalista do Prêmio Jabuti, 2000); O jovem Che Guevara (2004); Paragens (Finalista do Prêmio Jabuti, 2005); O jovem JK (2005); Viagem à montanha azul (2005); Rios sedentos (2006), além de diversos textos em antologias e da tradução de A Cavalaria Vermelha, de Isaac Babel (1986).
Edmur Fonseca – Se bem me lembro, você publicou até hoje nove livros, de Sabor de química a O jovem JK, abrangendo crônicas, novelas, contos, até a mistura de ficção com a história real. Sinceramente, você esteve seguro, desde o começo, de seus objetivos, de seus meios de escrever, de seu programa de vida.
Roniwalter Jatobá - Sou um escritor obcecado com o trabalho que me propus a fazer nos começo dos anos 1970, que é dar voz ao trabalhador em São Paulo, principalmente o migrante mineiro e nordestino que vive na metrópole. Pertenço à ala dos ficcionistas brasileiros ligados à realidade, e com o fito de comprovar a existência de uma temática nossa, brasileira, longe de esgotar-se. Escrevo com o que sou. Sou o que há de mim, apenas.
Edmur Fonseca – Depois da publicação do seu livro de estréia, que é de 1976, seus livros se sucedem com absoluta regularidade numa média aproximada de três anos. Esse será um indicador de absoluto equilíbrio emocional frente aos resultados de seu trabalho. Ou haverá alguma outra explicação para esse fenômeno?
Roniwalter Jatobá – Escrevo devagar. Sigo sempre o conselho de Otto Maria Carpeaux, que dizia que o estilo é a escolha do que deve ficar na página escrita e o que deve ser omitido. É a escolha entre o que deve perecer e o que deve sobreviver. Na literatura é preciso muita paciência até encontrar o tom e o ritmo certos. Um exemplo é a novela “Tiziu”, presente no livro Paragens. Como você sabe, tiziu é um pássaro que se urbanizou, vive de restos de comida nas grandes cidades. O título, na verdade, é simbólico. É a história de Agostinho, que depois de 25 anos em São Paulo volta à sua terra de origem. É a história de um homem que vive a dura e descarnada história vivida por milhões de brasileiros, aqueles que nascem e vivem bem longe até mesmo dos mínimos direitos de um cidadão, lutando duramente pela sobrevivência e sonhando sonhos que, embora pequenos, não têm qualquer chance de realização. O enredo, no entanto, é a volta. A volta para encontrar a si mesmo em um lugar que não é mais o mesmo. Veja o que acontece quando Édipo volta a Tebas, quando Orestes volta a Argos. Nos gregos, em toda literatura de ficção, o ser humano não quer voltar, mas volta. É empurrado para trás, para buscar a si mesmo, e o que encontra? O nada.
Edmur Fonseca – A partir dos conceitos mais recentes da lingüística moderna, você, que antes de tudo é um ficcionista, como distingue o autor de ficção, do historiador, do autor biográfico e o crítico? Ou ainda podem-se ler os textos sobre os jovens JK e Che Guevara como crônicas de duas juventudes ricas de aventuras e exemplos de vida.
Roniwalter Jatobá - Uma biografia pode, sim, ter um tom mais ficcional, desde que você não invente ou deturpe a vida do biografado. A coleção “Jovens sem fronteiras”, da qual faz parte os dois livros que escrevi – O jovem Che Guevara e O jovem JK -- tem como objetivo contar a infância e a adolescência de pessoas interessantes da história num caldeirão em que se misturam experiências de vida, fatos e, para torná-lo de agradável leitura, uma pitada de ficção. Para dizer a verdade, nunca tinha pensado em escrever um livro sobre Ernesto Guevara, o Che. Mas, a editora Nova Alexandria me convidou para escrevê-lo para a coleção que já havia enfocado o mesmo período de vida de John Lennon e Noel Rosa, ambos recriados com um toque ficcional. Foi o que fiz. Assim, a história do rapaz atormentado pela asma, que o deixava prostrado na cama, mas cheio de garra nos estudos e nos esportes, ganhou um toque de ficção e acho que vem agradando bastante aos jovens, sobretudo para aqueles que usam uma camiseta com a famosa imagem do Che e não sabem nada ou apenas que ele foi um herói em Cuba.
Edmur Fonseca – Certas páginas de O jovem JK e de O jovem Che Guevara lembram a tradição clássica dos romances biográficos. Unindo num mesmo contexto ficção e uma cuidadosa reconstituição histórica traça o papel apaixonante, de dois autênticos pioneiros. Transformadores, cada um a seu modo das respectivas sociedades de seu tempo, tanto no Brasil como em Cuba, pode-se dizer que se identifica, de algum modo com eles, como escritor e cidadão participante?
Roniwalter Jatobá – Sim, me considero um escritor do meu tempo. Participo ainda mais quando faço literatura. Um grande amigo meu, o poeta Arnaldo Xavier, já falecido, foi quem me deu uma boa definição dos meus livros sobre a classe proletária de São Paulo. “Se um extraterrestre chegasse a São Paulo, descesse em São Bernardo do Campo e quisesse saber como era o cotidiano nas fábricas do ABC nos anos 70, o único registro seria a sua literatura”, disse. Exageros de amigo à parte, também acho que ele revela por dentro o inferno da indústria automobilista do ABC, descrito por quem o conheceu como trabalhador; o inferno dos turnos de trabalho; o inferno da mais-valia que se transforma em lucros multinacionais e em danosos investimentos dos gringos na Amazônia; o inferno do facão (a ameaça permanente do corte, como instrumento de chantagem contra os que se recusam a fazer horas extras ou a trabalhar nos domingos). E tudo isso com o olhar atento a tudo que aprendi de literatura (e na fábrica), insuflando alma aos personagens, cinzelando seus rostos, criando suas identidades perdidas e sempre em busca da felicidade, que é supremo objetivo dos homens.
Edmur Fonseca - Os seus escritos, em geral, são o resultado de suas experiências e expectativas sobre a própria existência e a existência humana além de uma singular expectativa sobre a obra puramente literária. Nesse sentido, você é um escritor livre, sujeito apenas à expressão de seus valores em confronto com a sociedade. Minha pergunta: o que você pode dizer dos textos escritos sob encomenda? Esse é o caso da coleção “Os jovens sem fronteiras”, de perspectiva visivelmente didática. Ao escrever sobre JK e Guevara, quais as exigências fundamentais do editor? Há ou não a possibilidade da escrita em liberdade, que o que se espera de cada autor?
Roniwalter Jatobá - Durante a minha fase adulta, sempre sobrevivi de outra profissão, seja como operário no ABC ou jornalista na Editora Abril. Por isso, a literatura sempre foi campo de inteira liberdade, de escrever o que me viesse à mente, independente de gênero. As biografias, no entanto, foram feitas de encomenda. Livro de encomenda pode ser igual, ou melhor, do que qualquer um outro. Dostoievski, na Rússia, e Graciliano Ramos, no Brasil, escreveram sob encomenda. Ainda não escrevi ficção encomendada por editores porque dificilmente eles pediriam para escrever sobre a trágica vida brasileira. Assim, em qualquer gênero, basta eu ter vontade e inspiração que para ali segue o meu instinto do escritor. E acredito seriamente na literatura. O ato de ler poesia e prosa é uma das ocupações mais estimulantes e enriquecedoras do espírito humano. Para o escritor Mario Vargas Llosa, a literatura é uma atividade insubstituível para a formação de cidadãos na sociedade moderna e democrática. “Por essa razão, ela deveria ser semeada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas educacionais”, diz o escritor peruano. “Nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do sectarismo religioso ou político e do nacionalismo excludente do que esta verdade que sempre surge na grande literatura: todos são essencialmente iguais.”
* Edmur Fonseca, mineiro de Matozinhos, 81 anos, é jornalista e escritor
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