Roniwalter Jatobá
Acabo de ler um ensaio da escritora Janet Malcolm, chamado “Uma viagem à vida do escritor” (Reading Chekhov), sobre o autor russo Anton Tchekov (1860-1904). Considerado um dos criadores da verdadeira short story, Tchekov é um mestre na arte de mostrar, no pequeno texto, a complexidade humana. Filho de um pequeno comerciante de província e neto de servos de gleba, Tchekov se formou em medicina aos vinte anos, mas dedicou a sua curta vida (morreu de tuberculose com 44 anos) a mostrar a Rússia de seu tempo. Se vivo estivesse, seria um crítico feroz da nossa época. Nesse sentido, nada é tão atual quanto a sua carta ao irmão Nikolai, em março de 1886, quando o repreende pela sua falta de afinco à literatura e o que significa ser uma pessoa culta.
“... Você costuma reclamar comigo que as pessoas não o compreendem. Goethe e Newton não reclamaram disso. Só Cristo reclamou disso, mas Ele estava falando da Sua doutrina e não Dele mesmo. As pessoas o compreendem perfeitamente. E se você não entende a si mesmo, não é culpa delas.
Garanto a você, como irmão e como amigo, que eu o compreendo e, do fundo do coração, me importo com você. Conheço suas qualidades positivas como conheço meus cinco dedos; eu as valorizo e respeito... Você é gentil a ponto de ser mole, é bondoso, altruísta, disposto a dividir seu último vintém; você não sente nem inveja, nem ódio; você é sincero, sente pena dos homens e dos animais; você tem confiança, sem despeito ou malícia, e não se lembra do mal. Recebeu lá de cima um dom que as pessoas não têm: você tem talento. Esse talento o coloca acima de milhões de outros homens, pois na Terra só um em dois milhões é um artista. O seu talento o põe à parte: se você fosse um sapo ou uma tarântula, mesmo assim as pessoas o respeitariam, pois, devido ao talento, tudo é perdoado.
Você só tem um defeito, e a falsidade da sua situação, sua infelicidade e o catarro nas suas tripas, tudo se deve a isso. E este é a sua absoluta falta de cultura. Desculpe, mas veritas magis amicitia. Você vê, a vida tem suas condições. Para que nos sintamos à vontade entre as pessoas educadas, para que nos sintamos em casa e felizes com elas, é preciso ser, em certa medida, culto...
Pessoas cultas, na minha opinião, devem atender aos seguintes requisitos:
1. Elas respeitam a personalidade humana e, portanto, são sempre gentis, corteses e prontas a ceder diante dos outros. Elas não armam uma confusão por causa de um martelo ou de uma borracha perdida... Elas perdoam o barulho, o frio, a comida ressecada, as piadas e a presença de estranhos na casa.
2. Elas não têm simpatia apenas por mendigos e gatos. O coração delas se aflige com aquilo que o olho não vê.
3. Elas respeitam a propriedade dos outros e, portanto, pagam suas dívidas.
4. Elas são sinceras e têm horror à mentira, como se fosse o fogo. Elas não mentem nem em relação às pequenas coisas. Uma mentira é um insulto àquele que ouve e o deixa numa posição inferior aos olhos daquele que fala. Elas não assumem poses, comportam-se na rua do mesmo modo que o fazem em casa; não ficam se mostrando diante dos companheiros em pior situação. Não são dadas a tagarelar demais e a ficar impondo suas confidências a pessoas que não pediram para ouvi-las. Em sinal de consideração aos ouvidos dos outros, elas ficam mais tempo caladas do que falando.
5. Elas não se depreciam para atrair a piedade alheia. Não encenam um espetáculo piegas para que as pessoas suspirem e a tenham em alta conta. Não dizem "Ninguém me entende", nem "Eu me tomei uma pessoa de segunda categoria", porque tudo isso é só uma tentativa de provocar um efeito barato, é vulgar, velho, falso...
6. Elas não são dominadas por uma vaidade superficial. Não ligam para falsos brilhantes, como conhecer celebridades... Se ganham uns trocados, não se vangloriam disso como se tivessem ganhado cem rublos, e não se gabam de conseguir entrar em lugares onde outros são barrados... Os que são verdadeiramente talentosos sempre se mantêm em segundo plano, em meio à multidão, tão longe quanto possível de qualquer publicidade...
7. Se elas têm talento, elas respeitam esse dom. Por ele sacrificam tudo o mais: mulheres, vinho, vaidade...
8. Elas desenvolvem em si mesmas uma sensibilidade estética. Não conseguem ir dormir com a roupa do corpo, ver buracos cheios de baratas nas paredes, respirar ar viciado, andar no assoalho em que alguém cuspiu, cozinhar suas refeições num fogareiro a querosene. Procuram restringir e tomar o mais nobre possível o instinto sexual. O que procuram numa mulher não é uma companheira de cama... Querem, especialmente se são artistas, vivacidade, elegância, humanidade e a capacidade de ser mãe...
E assim por diante. É assim que são as pessoas que têm cultura. Para adquirir cultura e não se deixar ficar num plano inferior ao do meio que você freqüenta, não basta ter lido The Pickwick Papers e aprender um monólogo de Fausto.
O que é necessário é um trabalho constante, dia e noite, leituras constantes, estudo, força de vontade... Você precisa abandonar sua vaidade, você não é uma criança... logo vai estar com 30 anos. Já está na hora!
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