quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Che, mais vivo do que nunca

Roniwalter Jatobá



Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, final de 2006. Um ex-sargento do Exército é operado de cataratas num hospital doado pelo povo cubano e recém inaugurado pelo presidente Evo Morales. Trata-se de mais um dos milhares de bolivianos que fazem tratamentos oftalmológicos gratuitos oferecidos por Cuba em toda a América Latina. Logo após a operação, seu filho vai à sede do jornal El Deber e pede que publiquem um agradecimento aos médicos cubanos por recuperar a visão do pai.

Seria mais uma bem-sucedida cirurgia da chamada “Operación Milagro” realizada por médicos cubanos, mas o nome do ex-sargento chama a atenção. É Mario Terán. Para quem não sabe, foi o homem que assassinou friamente o comandante Ernesto Che Guevara há 40 anos, em 9 de outubro de 1967, logo depois que ele foi capturado num local chamado Quebrada Del Churo, no leste da Bolívia.

Dessa forma, humanitariamente, médicos cubanos “vingavam” a morte do Che. "Quatro décadas depois de Mario Terán ter tentado destruir um sonho e uma idéia, Che retorna para vencer mais uma batalha", apontou o jornal Granma. "Hoje um homem velho, Terán pode apreciar de novo as cores do céu e da floresta, admirar os sorrisos dos seus netos e assistir a jogos de futebol."

La Higuera, Bolívia, 8 de outubro de 1967. De pés e mãos atados, o comandante Che Guevara está deitado no chão do aposento de uma escola, aguardando ordens superiores. À noite, tentam interrogá-lo, mas o líder revolucionário permanece fechado em seu silêncio.

No dia seguinte, um coronel tenta colher informações sobre os guerrilheiros que ainda estão em fuga.

-- Coronel, tenho memória muito ruim – diz Che. – Não me lembro e nem sei como responder à sua pergunta.

O militar começa um breve interrogatório.

-- O senhor é cubano ou argentino?-- indaga.

-- Sou cubano, argentino, boliviano, peruano, equatoriano... O senhor entende.

-- O que o levou a resolver a operar em nosso país?

-- O senhor não vê o estado em vivem os camponeses? São quase como selvagens, vivendo num estado de pobreza que deprime o coração, tendo apenas um aposento no qual dormem e comem, sem roupas para vestir, abandonados como animais...

-- Mas o mesmo acontece em Cuba –- diz o coronel.

-- Não, isso não é verdade. Não nego que ainda existe pobreza em Cuba, porém pelo menos lá os camponeses têm uma idéia de progresso, enquanto o boliviano vive sem esperança. Tal com nasce, morre, sem jamais ver melhoras em sua condição humana.

O destino do Che está decidido. O governo boliviano ordena que se executem os prisioneiros. O sargento Mario Terán, que havia se oferecido para a tarefa, será o carrasco. Quando ele entra pela porta, Che diz:

-- Sei que você veio para me matar. Atire, covarde, você só vai matar um homem.

O militar aponta seu fuzil semi-automático e puxa o gatilho, atingindo-o nos braços e pernas. Ele cai e fica se contorcendo no chão, aparentemente mordendo um dos pulsos na tentativa de evitar gritos. O sargento dispara outra rajada. Outro soldado colabora com um disparo final, o tiro de misericórdia.

Eram 13 horas e dez minutos de 9 de outubro de 1967, um domingo de sol. Aos 39 anos de idade, o comandante Ernesto Che Guevara está morto.

Um mundo mais igualitário e justo. Conheci a história sobre a vida de Ernesto Che Guevara apenas no início da década de 1970 e, um pouco mais ainda, quando pesquisei sua vida para uma biografia para jovens. A sua trajetória foi um convite para transformar o mundo em algo melhor, mais igualitário e mais justo. E quem poderia ficar indiferente naqueles tempos tão conturbados? Aprendi que o guerrilheiro argentino, admirador de poesia e prosa, inspirou-se noutro libertador, o cubano José Martí, para mostrar que "a melhor forma de dizer é fazer".

E fez. Sonhador utópico, acima de possíveis erros que cometeu no decorrer de seus 39 anos, conservou a fé inabalável em suas idéias e a aura de um homem incorruptível que renuncia à sedução do poder.

A Cidade do México, onde conheceu Fidel Castro, foi o seu berço revolucionário. Ali, em 1955, depois de fazer duas memoráveis viagens por países da América Latina e conhecer os problemas da região, o médico e asmático Ernesto Che Guevara encontra seu destino. Depois de um ano de treinamento militar nos arredores da capital mexicana, Che e outros 82 revolucionários partem, em 25 de novembro de 1956, em direção a Cuba, a bordo do pequeno barco Granma.

Desembarcam na Província do Oriente, sete dias depois. Rapidamente descobertos pelo exército do ditador Fulgêncio Batista, 21 deles são massacrados. Os sobreviventes, Che entre eles, refugiam-se em Sierra Maestra. Nascia, então, o movimento guerrilheiro que, em 2 de janeiro de 1959, expulsaria de Cuba o ditador e estabeleceria a primeira república socialista da América Latina.

Na chegada à Havana, após a entrada vitoriosa de Fidel Castro em 8 de janeiro de 1959, Che Guevara logo aplica sua disciplina aprendida nos momentos difíceis e decisivos da guerra em solo cubano: proíbe a venda de bebidas alcoólicas e dos jogos de azar.

Enquanto as multidões ainda celebravam nas ruas o êxito dos revolucionários, o Conselho de Ministros concede ao Che a nacionalidade cubana. Mas, em seguida, ele cai doente. Diagnóstico: anemia e enfisema pulmonar duplo. Por recomendação médica, ele parte para um período de repouso no balneário de Tarará, próximo a Havana. Mesmo convalescente, elabora dali os planos e metas para o futuro de Cuba, como os pormenores de uma reforma agrária.

Em 28 de outubro de 1959, onze meses após a vitória, Guevara assume a presidência do Banco Nacional de Cuba. O próprio Che encarou essa escolha como um momento bem-humorado. Contava ele que, numa reunião do alto escalão do governo, Fidel perguntou se havia ali algum economista. Distraído, Guevara entendeu “comunista”. Ergueu a mão e conquistou o cargo.

O correspondente do mais importante jornal norte-americano, The New York Times, fez o seguinte comentário sobre a nomeação de Che para o banco do país:

-- Houve assombro e senso de ridículo... Che não entendia de bancos, mas Fidel precisava de um revolucionário, e não existiam banqueiros revolucionários.

Nesse período, Guevara já havia se separado de Hilda Gadea, que conheceu na Guatemala em 1953 e com quem teve uma filha, Hilda Beatriz, e se casado com a cubana Aleide March, que conheceu na guerrilha, e futuramente iriam gerar quatro filhos (Aleidita, Camilo, Celia e Ernesto).

Dedicado à revolução, ele trabalhava até 16 horas no banco e, nos finais de semana, aproveitava para cortar cana. Guevara foi o principal incentivador do trabalho voluntário na produção. Os membros dos ministérios e das universidades, uma vez por semana, ajudavam no corte de cana ou em outra função produtiva.

-- O trabalho voluntário é um veículo de ligação e de compreensão entre nossos trabalhadores administrativos e os trabalhadores braçais – dizia ele.

Impôs também a austeridade como sua marca: não autoriza sua mulher, Aleida, a exceder a cota de alimentos em época de racionamento e nem a usar o carro oficial.

Durante o ano de 1960, o governo revolucionário expropriou latifúndios, muitos de propriedade de empresas norte-americanas. Em represália, o governo de Washington decreta um embargo comercial, suspendendo a compra do seu principal produto de exportação, o açúcar. A cada pressão norte-americana o governo cubano radicalizava mais as suas posições:

-- Cuba sim, ianques não.

No começo de janeiro de 1961, os Estados Unidos rompem relações diplomáticas com Cuba e Che Guevara assume o cargo de ministro da Indústria. Meses depois, em abril, a ilha sofre a invasão de mercenários, apoiados pela CIA, na baía dos Porcos, com o objetivo de derrubar o governo revolucionário. A resistência do povo cubano foi fundamental para barrar as tropas invasoras, que foram dominadas antes de ganhar força. Cuba perde 161 combatentes, mas o Exército cubano faz 1.200 prisioneiros, que logo são trocados por um resgate de 52 milhões de dólares em remédios e alimentos. Ainda nesse ano Che representa Cuba na reunião da Conferência Interamericana de Punta Del Este, em Montevidéu, Uruguai, onde denunciou firmemente o imperialismo norte-americano. Na volta, passou pelo Brasil e recebeu a comenda Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul das mãos do presidente Jânio Quadros.

Em outubro de 1962, Cuba enfrenta nova crise com os Estados Unidos. O governo norte-americano descobre que na ilha havia mísseis atômicos soviéticos e exigiu que fossem desativados. Iniciou-se, então, o cerco militar contra Cuba e o mundo chegou próximo a um confronto nuclear, à Terceira Guerra Mundial. Os soviéticos foram obrigados a recuar e, unilateralmente, sem acordo com os cubanos, decidiram retirar os mísseis da ilha.

Ernesto Che Guevara não se adaptou bem, no entanto, às funções burocráticas, mesmo na função de presidente de banco ou ministro. A partir de 1964, tornou-se uma espécie de relações exteriores da Revolução Cubana, viajando para África, Ásia e América Latina. Como presidente da delegação cubana na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 11 de dezembro, em Nova York, faz um forte discurso atacando os mordomos do imperialismo norte-americano na América Latina.

Guevara queria mesmo era colocar em prática a sua teoria de expansão do socialismo. Em abril de 1965, juntamente com 13 cubanos, entra no Congo, África. Fracassa, no entanto, a sua tentativa revolucionária. Meses depois, em outubro, no ato de fundação do Partido Comunista Cubano, Fidel Castro lê uma carta na qual Guevara abdica de todos os seus cargos na revolução de Cuba:

“Renuncio formalmente a meus cargos na direção do partido, a meu cargo de ministro, a meu grau de comandante, a minha condição de cubano. (...) Outras terras do mundo reclamam o concurso de meus modestos esforços.

Depois do insucesso no Congo, Guevara volta secretamente a Cuba para preparar a campanha da Bolívia. Ele escolhera este país por causa de sua localização central, o que permitiria estender o movimento guerrilheiro por todo o continente latino-americano. Ali, todos sabem, encontraria a morte.

Ernesto Che Guevara é, sem dúvida, o maior mito de esquerda do século 20. E continua, no novo milênio, mais vivo do que nunca, apesar de uma imprensa de direita – porta-vozes de Miami --, que, às vésperas do 40º aniversário de sua morte, propositadamente busca esquecer a conjuntura em que viveu o líder revolucionário e, deslocada do contexto histórico, tenta desacreditar a biografia de Che Guevara e, por tabela, os ideais do socialismo. No pasarán.

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