sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O cronista de São Paulo

Roniwalter Jatobá


A primeira vez que li um texto de Lourenço Diaféria foi em Escrita nº. 8, de maio de 1976, quando a revista literária paulistana publicou os cinco autores premiados pelo então prestigiadíssimo Concurso Nacional de Contos do Paraná. Lembro que o conto tinha o estranho título de “Como se fosse um boi”, mas, embora nos remetesse ao mundo rural, trazia as perambulações de um anônimo marginal pelos labirintos da cidade de São Paulo. Fiquei fascinado com o estilo do autor, sutil observador das coisas miúdas e graúdas nos desvãos da metrópole. A partir daí, me tornei leitor assíduo de suas crônicas no jornal Folha de S. Paulo.
Lourenço Diaféria nasceu no bairro paulistano do Brás em 28 de agosto de 1933. Filho de um italiano libertário, que, segundo ele, “nunca usou relógio de pulso e que só me bateu uma vez e depois chorou”, e de uma mãe portuguesa, mulher de fibra, que batia nele de tamanco, “mas que nunca esteve ausente quando eu precisei”, viveu sua infância frente a frente às paisagens dos subúrbios da Central do Brasil. Adolescente, o pai queria que fosse estudar Direito, mas ele sempre quis ser jornalista e cursou a Faculdade Cásper Líbero e a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (cursos que não chegou a acabar) e teve os empregos de correspondente comercial e fiel de cartório antes de ingressar na Folha de S. Paulo como preparador de textos por meio de um concurso público. A carreira de cronista no jornal, no entanto, só começou em 1964, quando a direção da redação gostou de suas divagações em torno de como festejar o São João dentro de um dos minúsculos apartamentos que infestavam a cidade. Do período, duas memoráveis lembranças. Uma boa: a gratidão ao jornalista Hélio Pompeu, secretário de redação na época, que o fez reescrever dez vezes uma matéria de dez linhas, quando entrou na Folha, como processo de aprendizagem. Outra ruim: em setembro de 1977, os militares não gostaram da crônica “Herói. Morto. Nós” (publicada à página 212), sobre um sargento do Exército que havia pulado no fosso das ararinhas, no zoológico municipal, a fim de salvar um garoto de 14 anos das presas dos roedores; o menino é salvo, mas o sargento morre. O texto era uma homenagem ao sargento, herói na batalha campal cotidiana, mas referia-se também à estátua do Duque de Caxias, no centro paulistano, em cujo pedestal se aninhavam garotos de rua. Eram os anos verde-oliva de Ernesto Geisel (1974-1979), de mais um general-presidente no poder, e, por isso, Lourenço Diaféria foi preso pela Polícia Federal e enquadrado na Lei de Segurança Nacional. A história mostra que a direção do jornal não agiu de forma digna, mas o autor, felizmente, foi absolvido pelo Supremo. Mais tarde, Diaféria lembraria que o episódio foi um oceano que passou em sua vida. “Prejudicou-me em algumas coisas e ajudou-me em outras”, disse. “Eu me senti melhor, porque a pior coisa de quem tem uma coluna de jornal é ter ímpetos e se autocensurar.”
A crônica tem, no Brasil, uma tradição respeitável que vem do Portugal de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão e esplende entre nós com nomes como Machado de Assis, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, José Carlos Oliveira, Paulo Mendes Campos e, mais recentemente, Luis Fernando Verissimo, para ficarmos apenas em alguns exemplos. Mas, o que é a crônica? "Até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e pela originalidade com que aqui se desenvolveu", ensina o crítico Antonio Candido em A vida ao rés-do-chão. "Creio que a fórmula moderna, na qual entram um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma". E mais: "Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas".
Lourenço Diaféria, sem dúvida, é um bom exemplo desse jeito brasileiríssimo de fazer crônica. Segundo o próprio autor, a crônica revela ao distinto público que, atrás do botão eletrônico, existe um baixinho resfriado e de nariz pingando, que assoa e vocifera. “A crônica serve para mostrar o outro lado de tudo -- dos palanques, das torres, de eclipses, das enchentes, dos barracos, do poder e da majestade. Ela não consta no periódico por condescendência. A crônica é a lágrima, o sorriso, o aceno, a emoção, o berro, que não tem estrutura para se infiltrar como notícia, reportagem, editorial, comentário ou anúncio publicitário no jornal. E, contudo, é um pouco de tudo isso." Segundo Jorge de Sá, em A Crônica, Lourenço Diaféria tem um olhar sempre otimista. “Consciente de que sua função é prestar atenção ao banal, ele vai costurando retalhos de informações até transformá-los em um relato verossímil, estruturado de acordo com as leis da coerência do texto, as peças ajustadas como num quebra-cabeça. Diaféria vai cumprindo o exercício da crônica como um testemunho do nosso tempo, contando as tragicomédias diárias, fazendo o leitor recuperar seu senso crítico enquanto se diverte, alcançando o que está além da banalidade.”

Este livro traz uma seleção de crônicas que Lourenço Diaféria escreveu na Folha de S. Paulo, sobretudo no caderno Ilustrada, entre 1973 e 1977. Por elas passam os talentosos Diaférias, que um dia observa uma cobradora de ônibus ajudar uma mãe a trocar a roupa de seu bebê e, no outro, manda uma carta ao general de plantão avisando que algo cheira mal nos porões da ditadura militar. E, nessa multiplicidade de olhares, o autor torna-se, como diz Jorge de Sá, testemunho do nosso tempo, e o leitor termina sua leitura sentindo-se mais próximo do homem, dos outros homens, enriquecido em sua consciência e emoção.

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