domingo, 2 de agosto de 2009

Estado de Minas, 2 de agosto de 2009 - Entrevista

LITERATURA OPERÁRIA

Carlos Herculano

Roniwalter Jatobá, escritor mineiro, é visto como pioneiro em retratar a vida do trabalhador urbano brasileiro

Os 60 anos do escritor Roniwalter Jatobá, completados semana pas­sada, foram comemorados com o lançamento de dois livros pela Edi­tora Nova Alexandria: Contos antológicos, volume organizado por Luiz Ruffato; e O jovem Luiz Gonzaga, da coleção Jovens sem fron­teiras, criada especialmente para o autor. Mineiro de Campanário, no Vale do Rio Doce, de onde saiu aos 10 anos, Roniwalter vive em São Paulo desde o início da década de 1970. Antes de se formar em jorna­lismo e também assumir a literatura, chegou a trabalhar na constru­ção civil e na indústria automobilística. Como escritor, começou a fi­car conhecido com o livro Crônicas da vida operária, lançado em 1978. De lá para cá publicou vários outros, ganhou prêmios impor­tantes e trabalhou em alguns jornais e revistas. Atualmente, o escri­tor, que continua vivendo em São Paulo, começa a escrever um no­vo livro, no qual contará uma história relacionada à Coluna Prestes, quando da sua passagem pelo sertão baiano. Quanto à publicação de Contos antológicos, Roniwalter Jatobá disse, em conversa com Car­los Herculano Lopes, que a obra representa o reconhecimento de um trabalho que, há quase 40 anos, ele vem realizando: "Deixa-me com a sensação de meio caminho andado nessa estrada cheia de obstácu­los que é a literatura brasileira."

Estado de Minas -- Como é essa história de ter sido você, com seus contos, quem praticamente "instaurou" a literatura operária no Brasil pelos idos de 1970? Ela era imprescindível naquele momento?

Roniwalter Jatobá -- Inicialmente, gostaria de deixar claro que a afirmação de que instaurei a literatura operária no País na década de 1970 é do escritor mineiro Luiz Ruffato, responsável pela seleção e apresentação de “Contos Antológicos” (Editora Nova Alexandria, 176 páginas), lançado em julho deste ano e que reúne, também de acordo com Ruffato, os meus melhores contos. Ao defender sua tese, Ruffato mostra que o operário, como personagem, foi pouco retratado na literatura brasileira. Segundo ele, antes dos meus textos, que saíram em livros como Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura, 1976), Crônicas da vida operária (Finalista do Prêmio Casa das Américas 1978, em Cuba) e Paragens (Finalista do Prêmio Jabuti 2005, São Paulo), o trabalhador urbano só podia ser entrevisto em um que outro romance – O cortiço, de Aluísio Azevedo, de 1890, Os corumbas, de Amando Fontes, de 1933, O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, de 1935 – ou em um que outro conto – de autores como Mário de Andrade e Alcântara Machado. Claro que fico envaidecido com esse pioneirismo, mas na década de 1970, vivendo em plena ditadura militar, não tinha essa consciência. Buscava apenas retratar a vivência num mundo de perplexidade, ou seja, a minha visão de um migrante e operário na indústria automobilística paulista.

Estado de Minas -- Com os olhos de hoje como você vê esse tipo de literatura engajada (inclusive a sua?), que foi produzida aqui no Brasil naquele período sombrio da ditadura militar. Ela resistiu bem ao tempo?

Roniwalter Jatobá -- Fiz a literatura que eu podia fazer naquele momento. E não a considero engajada, no sentido de que tinha, a toco custo, passar uma mensagem, seja política ou social. De acordo com o poeta Ruy Espinheira, em resenha sobre Contos Antológicos, publicada em A Tarde (Salvador, 18/7/2009) escrevo sobre a vida que conheci como nordestino migrante, motorista de caminhão, trabalhador de construção civil e fábrica, buscando condições melhores em São Paulo. Não tive nenhuma intenção de tratar cientificamente fatos e personagens, não levantei teses sociais. Minha partida, claro, foi a experiência real, porém não escrevi como historiador, antropólogo ou sociólogo, muito menos cultivando correções políticas – e sim como escritor. Anos depois, tenho quase certeza que as histórias resistiram, sim. Talvez porque busco uma literatura que olhe a vida de frente. E busco devolver ao leitor aquele Brasil que já esteve presente em nossa literatura de ficção, sobretudo a partir dos anos 30, que tanto ajudou na formação de uma consciência nacional.

Estado de Minas -- Nesse contexto, quais outros autores você destacaria?

Roniwalter Jatobá – Da minha geração aprecio o mineiro Murilo Carvalho e o paranaense Domingos Pellegrini.

Estado de Minas -- Como começou a sua história com a literatura? Tinha pretensões de ser escritor quando ainda vivia em Campanário?

Roniwalter Jatobá -- Acho que dois fatores importantes me fizeram arriscar na literatura: muita leitura e vivência. Nasci em Campanário, Minas, em 1949. Meus pais eram baianos, estavam ali desde o final da Segunda Grande Guerra (1939-1945), quando buscaram o norte mineiro para tentar a sobrevivência. Eram tempos difíceis, época de desbravamento de uma inóspita região. Quando começou a chegar o progresso, por exemplo o asfaltamento da Rio-Bahia, minha família voltou para o sertão baiano nas proximidades da cidade de Campo Formoso. E essa volta foi importante para mim. Vivendo na casa de um tio, entrei num colégio protestante para fazer o ginásio e, aí, a descoberta da literatura. Nesta pequena cidade, por sinal, havia um oásis cultural. Nunca me esqueço: os jovens, na grande maioria, brigavam para ver quem ia ler primeiro as novidades literárias que chegavam de Salvador. Havia ali um advogado e professor de geografia, Domingo Dantas, que colecionava livros autografados de autores brasileiros. Tinha todo mundo. Ele mandava buscar no Rio de Janeiro. Naquela época, e durante quatro anos, nos esbaldamos de ler Graciliano Ramos, José Lins do Rego e muita prosa americana. Em 1964, terminei o ginásio, mas meu pai não tinha condições de me enviar para Salvador para continuar os estudos.

Com quinze anos, a minha perspectiva era trabalhar na roça ou ajudar meu pai, que possuía um velho caminhão. Naquele período da nossa vida, o Ford amarelo servia para meu pai comercializar produtos industrializados (açúcar, bebidas) e também permutá-los por feijão, farinha etc. Fui, então, dirigir o caminhão. Fiquei, assim, nessas andanças por quase três anos. O trabalho era agradável e me sobrava muito tempo. Enquanto meu pai cuidava dos negócios nos pequenos lugarejos, eu lia. Foi aí que conheci quase todos os títulos da pequena biblioteca de Campo Formoso e travei conhecimento com os textos de Dostoiévski, Gogol, Kafka e muitos outros.

Depois de servir o Exército em Salvador, vim para São Paulo. Era início de 1970. Aqui fui morar em São Miguel Paulista. Até abril bati muita perna em busca de trabalho. Na Nitroquímica, a maior fábrica de São Miguel, e que empregava quase todo mundo que chegava da Bahia, não tinha vaga. Rodei a cidade inteira até que, um dia, consegui uma vaga de ajudante de almoxarifado na Karmann-Ghia, no ABC. Fiquei três anos empurrando carrinho cheio de peças para a produção. Em 1973, saí e entrei na Abril, como apontador de produção na gráfica. A partir daí, auxiliado pela empresa, fiz supletivo colegial e, depois, pude me formar em jornalismo. Foi na escola que comecei a escrever os primeiros trabalhos. Eram contos e, em todos eles, o cenário era a periferia paulistana ou os dramas dos migrantes. Virei, então, escritor e jornalista. Enquanto trabalhava em Versus, Movimento e publicações da Abril, continuei a escrever. Aí, um dia, mandei um conto para a revista Ficção, no Rio, e outro para a Escrita, em São Paulo. Ganhei os dois prêmios e não parei mais.

Estado de Minas -- Por falar nisso, quais são as lembranças que você guarda da cidade. Qual ainda é a sua ligação com Minas?

Roniwalter Jatobá -- Tenho ido pouco a Campanário. A maioria de meus parentes mora agora em Belo Horizonte, mas ainda tenho familiares por lá. Recentemente, escrevi o posfácio do livro A saga dos Florêncios, de Elio Domingos, que conta a vida do patriarca Florêncio Domingos dos Santos, fundador de Campanário (antiga Igreja Nova). Foi como mergulhar no nosso mundo particular das madalenas de Proust. Todo um universo de lembranças, umas mais presentes, outras que estavam perdidas, vieram à tona. E todas elas, para mim, tinham um sabor de infância. E isso não se apaga. Foi ali, às margens da Rio-Bahia, que recebi os primeiros sinais de consciência do mundo.

Estado de Minas -- Fale-nos dos livros que você publicou para a Coleção Jovens sem fronteiras, da Nova Alexandria, e especialmente sobre O jovem Luiz Gonzaga, cujos 20 anos de sua morte estão sendo comemorados?

Roniwalter Jatobá -- Há escassez de bons textos para o público jovem. Num limbo entre o leitor adulto e o infantil, os jovens sentem falta de uma literatura que aponte rumos num momento de formação da sua personalidade. Por isso, aproveitando a minha experiência em duas publicações muito especiais que abordaram a história brasileira e nas quais trabalhei (Nosso Século, da Abril Cultural, e Retrato do Brasil, das editora Três e Política), editei para o público jovem A crise do regime militar e Juazeiro: guerra no sertão, sobre o padre Cícero, ambos pela Editora Ática. Mais recentemente, comecei a escrever para a coleção “Jovens sem fronteiras”, da Editora Nova Alexandria, onde publiquei O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005) e O jovem Fidel Castro (2008). Agora estou lançando O jovem Luiz Gonzaga, que conta a trajetória do “rei do baião”, desde o seu nascimento em Exu, Pernambuco, em 13 de dezembro de 1912, até a sua morte em 2 de agosto de 1989, em Recife. Exploro a sua rica e conturbada infância e juventude, a vocação para a música, revelada desde cedo, enfoco os anos de Exército, os amores e, sobretudo, a paixão pelo Nordeste, que ele cantou melhor do que ninguém.

Estado de Minas -- O que significou para você a publicação dos seus contos antológicos. É uma coroação do seu trabalho como ficcionista?

Roniwalter Jatobá -- Sinto, com muito orgulho, que representa um reconhecimento ao trabalho que venho realizando na literatura brasileira há mais de três décadas. Segundo o ex-professor da USP Flávio Aguiar, na época esse tipo de literatura enfrentou um paredão de preconceitos. “Houve crítica que o denunciasse como populista, naturalismo requentado, prosa referencial, superada”, disse ele. “Embaida por seu próprio modismo formalista, faltava a essa crítica a sutileza necessária para perceber que ali medravam aspectos criadores insuspeitos, como o de debuxar vozes antes quase inaudíveis no terreno literário, a não ser pelo viés repetido do pitoresco ou da falta de educação formal, as vozes do mundo do trabalho.” A publicação dos “Contos Antológicos” me deixa com a sensação de meio caminho andado nessa estrada cheia de obstáculos que é a literatura brasileira.

Estado de Minas -- Quais são os seus próximos projetos literários. Por falar nisso, como você anda vendo a literatura brasileira atual?

Roniwalter Jatobá -- O próximo passo é um romance histórico, cuja história se passa em 1926, na Chapada Diamantina, Bahia, durante a grande epopéia da Coluna Prestes na região. Pesquiso o assunto há mais de cinco anos e acho que já está na hora de mergulhar nessa fascinante aventura. Quanto à literatura atual, leio bastante. Mas, como escritor, prefiro não fazer nenhuma avaliação agora. Os autores de hoje podem muito bem esperar três décadas, como eu esperei pacientemente, acreditando que estava no caminho certo da minha própria voz literária.

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