sábado, 5 de setembro de 2009

Transformação poética


Luiz Ruffato



Comentando a obra de Oswaldo França Júnior, João Luiz Lafetá observou que o autor mineiro valorizava, em seus romances, o trabalho, “coisa rara numa literatura que quase sempre o desprezou e evitou representá-lo”[1]. Curiosa questão o crítico paulista levantou. Se nos debruçarmos sobre a produção ficcional brasileira ao longo do tempo, poucas vezes vamos flagrar personagens exercendo algum tipo de atividade laborativa. Em geral, os escritores nacionais, bem-nascidos, satisfazem no próprio âmbito da classe média as suas necessidades de criação – nicho onde o trabalho nem sempre é bem visto. Quando extrapolam os seus horizontes, caem na tentação ou de idealizar o trabalhador, exibindo a exploração de que é vítima para combater politicamente sua opressão, ou de romantizar a figura do malandro ou do bandido, como pretenso contraponto rebelde às injustiças da sociedade, conforme emenda o próprio Lafetá.
Isso porque, talvez, a literatura de boa qualidade exija uma dose mínima de veracidade – e são escassos os autores brasileiros conhecedores das mazelas da classe trabalhadora. Roniwalter Jatobá, mineiro de Campanário, radicado em São Paulo desde 1970, é uma dessas exceções. Imigrante, foi motorista de caminhão, operário metalúrgico e gráfico, antes de se formar em jornalismo. A questão do trabalho ocupa o centro de suas preocupações, desde a estréia em 1976, com Sabor de Química, até o recente Paragens, de 2004, passando pela importantíssima antologia Trabalhadores do Brasil, de 1998, por ele organizada. Mas, vivência apenas não faz boa literatura. O que torna Jatobá um grande escritor é sua capacidade de transformar a matéria bruta da vida em Arte. Ou, como melhor traduz a crítica literária Cecília Almeida Salles: “o ato criador manipula a vida em uma permanente transformação poética para a construção da obra. A originalidade da construção encontra-se na unicidade da transformação: as combinações são singulares”[2].
Jatobá praticamente instaura a literatura proletária brasileira – e sintomaticamente conta com escassos herdeiros. Antes, o trabalhador urbano pode ser entrevisto em um que outro romance – O cortiço, de Aluísio Azevedo, de 1890, Os corumbas, de Amando Fontes, de 1933, O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, de 1935 – ou em um que outro conto – de autores como Mário de Andrade e Alcântara Machado. Contemporaneamente, alguns poucos se aventuraram no tema. Mas, sem dúvida, Jatobá é pioneiro ao alicerçar no operário a sua obra. Embora o Brasil tenha sido essencialmente rural até a década de 50, desde a virada do século XIX para o XX as cidades mais importantes contavam com estabelecimentos industriais – haja visto que a primeira greve geral foi convocado ainda em 1906, pelo à época forte movimento anarquista. Entretanto, apenas no final da década de 70 o proletariado ganhará espaço na literatura, não mais como símbolo idealizado, mas como personagem complexo e veraz.
Pelas páginas dos sete livros de Jatobá (três coletâneas de contos, três novelas e um romance), obsessivamente reescritas, desfila a brutal história recente do país, de industrialização a todo custo. A partir da década de 50, quando o presidente Juscelino Kubitschek implementa o “desenvolvimentismo” – “cinqüenta anos em cinco” – inicia-se um fluxo migratório sem precedentes, na direção Norte-Sul, que irá se acirrar nas décadas de 60 e 70, e que só agora começa a se amainar. Milhões de pessoas empurradas, de uma hora para outra, dos confins do sertão para servir de mão-de-obra barata à indústria de construção e de transformação de São Paulo. Pressionados ora pela seca atávica do Nordeste, ora pela miséria ingente de Minas Gerais, ora pela falta de perspectivas nos outros estados, os migrantes trocavam, do dia para a noite, o espaço amplo pela exigüidade, a economia de subsistência pelo salário, o imaginário rural pelo urbano. São os frutos desse rompimento brusco que emergem da ficção de Jatobá.
Mas, aqui o que diferencia o autor de um historiador, um antropólogo ou um sociólogo: o escritor, demiurgicamente, insufla alma aos personagens, cinzela seus rostos, dá-lhes identidade, arranca-os do anonimato a que foram relegados. E essa construção se faz através do alinhavamento de um estilo próprio, reconhecível nas várias camadas das reescrituras a que submete seus livros. A inquietação formal de Jatobá, que de certa maneira reflete sua inquietude com as coisas do mundo, pode ser observada, por exemplo, na reapropriação que faz de suas histórias. Só a título de exemplo, a pequena novela “Paragens”, seu mais recente título[3], é a reelaboração de um conto, “Via sacra”, publicado originalmente em 1976 e que ainda aparece na terceira edição de Sabor de química[4]. A comparação entre os dois textos dá-nos uma pálida idéia do rigoroso processo de criação de Jatobá, que não se satisfaz com a mera transposição do real para a ficção, mas que, ao tentar apreendê-lo, percebe a sua precariedade. O mesmo método pode ser reconhecido no conto “A mão esquerda”, de 1978, que contém a semente da novela Tiziu, de 1994. Ou ainda em “Margem”, que, dividido, inicialmente, em quatro partes, costurava a edição original de Ciriaco Martins e outras histórias, e que, a partir de Sabor de química, constrói-se em fragmentos de uma mesma narrativa[5].
E reescrever, para Jatobá, significa buscar uma expressão própria, capaz de traduzir a realidade que o incomoda. Fosse outro autor, talvez chafurdasse no preconceito – que transborda das páginas dos ficcionistas brasileiros – de retratar a miséria social utilizando-se de uma linguagem igualmente pobre, como se, agindo assim, aproximasse o leitor da realidade que pretende expor. Nos contos de Jatobá há uma perfeita simbiose entre fundo e forma – a história do proletariado se constrói sem reducionismo, sem afetação[6]. A um leitor mais atento deverá aflorar a força da narrativa construída em moldes bíblicos, onde a denúncia ou a lamentação não se encontra nunca dissociada da poesia. Porque Jatobá nos explicita que, por mais cinza a vida suburbana, todos nós, por sermos humanos, perseguimos, ao fim e ao cabo, a mesma coisa: a felicidade. E esta se encontra no horizonte do improvável.
Uma palavra ainda sobre a organização desse livro. Misturados, aqui encontram-se todos os contos de Crônicas da vida operária e todos os da segunda parte[7] da terceira edição de Sabor de química (que basicamente reúne as narrativas de Crônicas nordestinas/Sabor de química, de 1976 e Ciriaco Martins e outras histórias, de 1977), menos “Via sacra”, que fecha o volume, bastante modificado, com o título de “Paragens”. Da chegada do imigrante (mineiro?, nordestino?, pouco importa) ao subúrbio industrial de São Paulo, o peito explodindo em esperanças, a uma espécie de autoprestação-de-contas, quarenta anos depois, dentro de um trem de metrô, a história de um projeto fracassado – e se se frustra a expectativa pessoal, é a própria idéia de nação que naufraga.


[1] In “O romance atual” apud A dimensão da noite. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, pág. 251.
[2] In Gesto inacabado. São Paulo, Fapesp/Annablume, 1998, pág. 89
[3] Paragens reúne três novelas de Roniwalter Jatobá: “Pássaro selvagem”, “Paragens” e “Tiziu” e foi publicado pela Boitempo Editorial, São Paulo, 2004. “Pássaro selvagem” foi editado originalmente em 1985 e “Tiziu” em 1994.
[4] Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1991.
[5] V. Ciriaco Martins e outras histórias. São Paulo, Alfa-Ômega, 1977.
[6] Rubem Mauro Machado, comentando Crônicas da vida operária, denuncia sua surpresa, ao afirmar que Jatobá “consegue uma simbiose tão perfeita entre a língua oral e a língua literária que o leitor menos avisado pode não se dar conta que ‘na verdade ninguém fala assim” (in “Roniwalter Jatobá: enfim, literatura proletária”. Suplemento da Tribuna – Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 30/09 e 01/10/1978, pág. 6)
[7] Da primeira parte constam histórias ambientadas no universo rural e preferi, para esta edição, concentrar a atenção no imaginário suburbano.

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