Ronaldo Cagiano*, Jornal Opção, Goiânia, 6 de dezembro de 2009
Selecionados por Luiz Ruffato, “Contos Antológicos de Roniwalter Jatobá” é uma daquelas obras indispensáveis para se entender o proletariado brasileiro. A vida da classe trabalhadora urbana, formada por legiões de migrantes, é o universo que Jatobá recriou
A recente edição de “Contos Antológicos” pela Editora Nova Alexandria, reunindo os melhores trabalhos desse gênero produzidos ao longo de trinta anos por Roniwalter Jatobá, não só vem marcar a presença de uma das grandes vozes da ficção contemporânea brasileira, como premiar ao leitor com uma prosa do mais alto padrão, naquilo que ele incorpora como expressão de uma qualidade narrativa, como pelo que representa de retrato sincero e poético de um extrato social e humano. Além de Amando Fontes (“Os Corumbas”) e José Lins do Rego (“Moleque Ricardo”), na literatura brasileira poucos são os autores que mergulharam na realidade proletária não apenas para esboçá-la, como também refletir sobre esse mundo tão esquecido. A vida proletária, quando é lembrada (e na ficção das novas gerações é tratada com superficialidade, ou solenemente negligenciada), converte-se de caricatura ou descamba para um protagonismo secundário. Muitas vezes, o trabalhador braçal da construção civil, o empregado de comércio, o metalúrgico, o operário das máquinas das indústrias, o motorista de ônibus, por exemplo, não passaram de mero coadjuvantes de uma história principal, em que o dono do poder, da força de trabalho ou do capital é que dominam o discurso narrativo. Selecionados por Luiz Ruffato, “Contos Antológicos de Roniwalter Jatobá” é uma daquelas obras indispensáveis para se entender o proletariado brasileiro a partir de uma mirada pessoal, que foi retirar da sofrida trajetória dos trabalhadores brasileiros que vieram buscar uma outra vida (e muitas vezes nem sempre a encontraram) matéria e circunstância para traduzir, sem equívocos e sem rodeios, a problemática social, econômica e cultural. Trata-se de uma visão subjacente à presença dos migrantes como força de trabalho que se constituíram em mola propulsora da riqueza brasileira a partir da década de 50, quando o País começa a viver uma intensa metamorfose, saltando de uma economia agrária para um capitalismo industrial e urbano, e nesses contos o autor permite ao leitor comum perceber que essa transformação proporcionada pelo industrialismo do pós-guerra e da era JK impôs um custo social e humano sem precedentes, tendo as migrações internas um papel preponderante nesse processo. Jatobá, que é mineiro (nascido em Campanário), mas passou boa parte de sua vida na Bahia, conhece de perto esse universo, as dores e aflições dos boias-frias, dos sem-terra, dos famintos, dos sem-opção e excluídos de todos os gêneros, que trocam as regiões mais pobres do País. Integra a imensa legião dos que chegaram em São Paulo “para vencer na vida” e tendo sido operário, motorista, empregado de indústria gráfica, antes de se formar em jornalismo. É sobre os que vieram aventurar-se, como ele, no sonho do emprego, do salário e de outra sorte na vida, padecendo a saudade, a solidão e a insularidade diante dos desafios dos grandes centros, que o autor vem focando seus contos e novelas, desde suas primeiras produções. Como em “Sabor de Química”, “Tiziu”, “Crônicas da Vida Operária” e “Pássaro Selvagem”, sua preocupação é com o destino desse trabalhador deslocado, fruto (ou vítima) dos processos migratórios. E o autor escreve mesclando a crueza de suas vidas com a delicadeza da linguagem, numa profunda reverência estética àqueles que, com sua mão-de-obra barata trouxeram apenas “duas mãos e o sentimento do mundo” e na força bruta de sua ilusão foram capazes de superar até mesmo as novas dores e outros fracassos, para alimentar o desejo de um dia vencer e voltar para suas origens, um pouco melhores do que chegaram, com a (im)provável felicidade na bagagem.
Antes relegados (como bem ilustra a história de Jacinto no conto “Remorsos”, abaixo transcrito) à própria sorte em suas remotas e trágicas origens, os personagens recolhidos por Jatobá no imenso caldeirão urbano são a tradução mais cruel do instinto de sobrevivência que impulsiona o homem e que muitas vezes, por falta de opção lá nos seus rincões mais inóspitos, sujeitam-se a um trabalho árduo. Premidos pela falta de emprego, pela miséria, pela seca e outras tantas privações, não se amedrontam em arriscar a própria vida nas construções, nos tornos, nas roldanas, nos serviços inseguros e até nos trabalhos indignos, perdendo às vezes dedos, mãos e filhos para a avassaladora engrenagem de um capitalismo que retira do ser até mesmo o amor próprio, porque a fome bate à porta e o trabalho (muitas vezes exploratório e opressivo) é o que resta contra as mesquinhas contingência da vida que um dia abandonou em busca de outras condições. Nas vozes de Germanos, Zélias, Jacintos, Tonicos, Santinas, Ciríacos e outros tantos sem nome, sem rosto e sem documento que aportaram à imensa selva de pedra paulistana, Roniwalter Jatobá dá vida a muitos que sempre viveram condenados a nenhuma. E nesse flerte particular com suas vidas e esperanças, realça a importância dos que doaram todo seu esforço, suor, lágrimas e muitas vezes a sua vida (e a dos seus) para construir não apenas um sonho íntimo, mas o de um País melhor, em cujo futuro não houvesse necessidade de outras histórias se repetirem com a singularidade trágica das vidas que Roniwalter recoloca com justiça e como homenagem nesses contos pungentes e de profunda humanidade.
Leia um conto de Roniwalter Jatobá Remorsos
Jacinto viu, nublado, por duas vezes, as enfermeiras passarem por ele apressadas, olharem para a sua camisa suja de sangue e se perderem no corredor em frente. A insegurança no trabalho, a coragem, essas, sim, ficaram no terreno da construção, bem próximo à casa da sua mãe. A escada em falso tombou entre baldes, tintas e aflitos: acode o homem! Pendurado entre garrafas pontiagudas, quebradas, que formavam barreiras no alto muro vizinho, Jacinto nessa hora somente sentia o frio da queda, o pavor de morrer. O peito, num rasgo profundo, dilacerado, em sangue. Os gritos que ecoavam pelas casas vizinhas não interferiram na trajetória do líquido vermelho que suja e escorre pelos vidros, se esparrama, tornando o branco do muro uma cor rubra e real.
As frases de Jacinto, da mãe, da meninada que correndo avisa, se interligam — Que pensação em morrer!; meu filho morreu!; ainda não morreu não! — em eco triste no movimento da tarde.
A sala do hospital, mesmo com o sol lá fora, não tinha um janelão que deixasse a claridade entrar. A luz acesa durante o dia dava um brilho estranho, amarelo, às pessoas que ocupam as quatro cadeiras e o pequeno sofá rasgado no encosto. O registro na carteira profissional não abriu portas nem fez mudar semblantes; rotina, espera. Na sala exígua podia ouvir as palavras, pouco usadas, dos que compunham o interior. Num canto, o ancião que respira descompassado, dificultoso, descrente da vida, olha para as próprias mãos, indiferente ao movimento, burburinho do hospital. Vezes seguidas, a mãe de Jacinto, gorda, vestido azul trocado às pressas, entrou no banheiro no final do corredor para lavar o pano que limpava o sangue que escorria dele. No banheiro, as pessoas que aguardavam na fila, desinquietas, reclamavam da vida, da própria fila, de tudo.
— Mãe, vou morrer! — disse Jacinto, respirando forte, fraco. Ele olhou os pés sujos de terra, o teto e os avisos colados na parede. Tentou ler, mas não conseguiu. Nem via no ambiente fechado, silencioso, sentimentos de tristeza, solidão, medo. Pessoas ansiosas por atendimento, pedintes, que ficam paradas, coladas em duras cadeiras e têm os corpos doloridos pela longa espera, mas não perambulam pelo corredor, com receio de incomodar. Elas esperam que as situações digam mais, muito mais que as palavras que a custo sairiam de suas bocas medrosas de falar. E esperam. Arrenegando da hora em que, doentes, têm precisão. A sirene da ambulância que se aproxima vai aumentando, aumentando, até dissipar os sussurros que escapavam no silêncio. A ambulância atravessa rente ao corredor, veloz como a dor de Jacinto. Ele sente pontadas e frio no coração. Ele delira inconsciente, imaginando. Viu desaparecer na manhã o orvalho que teima em continuar nas folhas frágeis e minúsculas. Soltou das mãos que o seguravam e alçou um voo rasteiro, depois subiu na imensidão do espaço que separa a vida da morte. Pairou de asas abertas. Grudou-as no corpo é soltou-se no espaço das lembranças, ora distantes, ora bem próximas, que davam a impressão de que ele participava. Sentiu remorsos na destruição de vidas: formigas, nambus de pés roxos, nambus de pés vermelhos, aranhas, pássaros, preás, coelhos, o matar de frangos em dias de festas. Deu vontade de fechar as asas e precipitar este pequeno corpo de encontro às minguadas folhas, em baque surdo na terra. De repente, grita. Jacinto sonha com o seu próprio vulto que, de cabeça erguida, grita e assobia para os cachorros que passam. Tinha saído logo cedo, sem caminho certo, vendo o mundo. Andou até a ponte do rio, de costas, contando os passos, pisando forte para deixar na areia fofa o rastro. Como se nada pudesse apagar a sua passagem. Ficou acariciando um ramo de urtiga brava nos braços para sentir a coceira entrar devagarinho no corpo. Era loucura. Brincadeira de criança. A gente cresce. Quando começa a descobrir que o doce de goiaba feito na cozinha esfumaçada vai ficando com sabor diferente, fica adulto. De pé, encostado à cerca, Jacinto vê formigas que correm indiferentes a ele, gigante que se posta em frente. Observa. A qualquer momento, o trabalhador que ia à dianteira poderia cair com tamanho peso às costas. Seguia cambaleante, mas não atrapalha o movimento dos outros pela areia quente, indiferente à chuva que se forma e vai criando cores novas no céu. Azul... mil, infinitas. Nada disso interfere na agitação dos trabalhadores que se torna mais veloz e precisa no final da tarde. O trabalhador da frente agora se firma em um monte de terra, escora a carga e, sem perder a dianteira, continua guiando nesta pequena estrada uma infinidade... Comanda. Trabalha também. Alguns gostariam de parar, descansar O corpo dolorido de longas caminhadas, mesmo sabendo que se a chuva que se anuncia desmoronar os caminhos, aí sim o trabalho dobrará. Assim, o que toma a dianteira pouco se preocupa com o que está acontecendo à sua volta. O que preocupa mesmo é a carga pesada que balança ao sopro de qualquer golpe de ar. A formiga líder segue sem medo de sombras reais e gigantescas de Jacinto, que se contorcem na estrada. A bota direita de Jacinto: o obstáculo que se interpõe. Um pé embotinado que, por segundos, dificulta. Em fila, cronometradas por um perfeito e pontual relógio que não bate as horas: esse sol que clareia a estrada de terra batida, trilhada na labuta, estrada sombreada. Sol que se rasga em fios por entre cerca de galhos, de ervas daninhas que, pensa a líder, não servem como alimentação. Caminha. Com o peso fatigante, à direita ou à esquerda, a visão é sempre a mesma. Parar não, deve pensar, sem ter tempo para brincadeiras, pois só o trabalho é importante. Sem trocar frases, absorta no alimento que carrega, não riria, também não ficaria triste, somente seguiria seus passos sem atrasar os outros. Pensa: um obstáculo que surja na frente e que porventura ocasione mortos, as que retomam devem cumprir rapidamente essa tarefa e, sem chorar os cadáveres, tirá-los para o lado à margem da estrada e amadurecer o corpo para novas lutas. Imagina: no fim da tarde o trabalho finda. Dezenas de corpos que ficaram lá em cima estão à espera de que a chuva que começa arraste os seus cadáveres por enxurradas pequenas, mais na frente se avoluma, e que os corpos desapareçam nas corredeiras do rio, em direção de peixes negros, amarelos e famintos. Outras formigas apressadas pela noite que se aproxima nem param no local onde jazem os corpos. Chove. Chuva fina, molhenta. Jacinto tira o pé que se apoia no arame farpado e pisa, traiçoeiro, espalhando as retardatárias trabalhadeiras, esmagando muitas com a sola da botina. Uma, mais afoita, defensiva, pula na sua perna, e aferroa dolorido. Ele pega a formiga entre dedos e arranca as suas patas, a cabeça, e joga o resto do corpo ao chão molhado, e ela pula com desejos incontroláveis de vida. Jacinto sente, agora, o mesmo instinto de sobreviver. Segura forte o braço da mãe, esquecendo as lembranças, os remorsos, os sonhos impossíveis, com os olhos sem trajetória e sem sentidos. Quando o primeiro vestígio branco da enfermeira atravessou a porta e se incrustou nas retinas da mãe de Jacinto, o último fio da vida dele desceu pela cadeira, não passeou pelo corredor do hospital, fugiu da fila do banheiro e se espalhou em grande quantidade pelo assoalho da sala. Sem grito de dor, Jacinto deu o derradeiro suspiro com naturalidade e apertou com mais força o braço gordo que o envolve. Afrouxou pouco a pouco, deixando marcas roxas que se limparam em momentos, desaparecendo na flacidez da gordura do braço materno. A mãe levantou-se e ergue Jacinto nos braços, com esforço, e o carrega com dificuldade em direção à saída. Um corpo frágil, insensível, sem vida, frio. A moça da recepção se sobressalta e diz:
— Dona, volta!
Ela nada responde e nem se volta. Sai à rua e o impacto do sol entra em seus olhos, ilumina o vestido azul e penetra em seu coração, explodindo-o.
*Ronaldo Cagiano é escritor.