segunda-feira, 29 de março de 2021

Marco Rheis - Uma Homenagem

Marcão num encontro virtual, uma semana antes do seu falecimento.

Muitos Anos de Vida

No dia
13 de Abril de 1993
eu acordei
às 7:20
33 anos depois.
_____

Viajante

Vejo este povo espalhado pelos lugares
onde muda de cor e feição mas muda nunca a explorada fé
na esperança do resistente olhar que desafia o descaso :
             “há uma recompensa para o justo
             sim, há um Deus que julga na Terra.”

O peito aparta a dor desta minha gente
- que caminha descalça na terra do chão -
mostrar seus costumes onde planeje cega justiça
feita pela lei do homem que não mata a fome que mata
neste lugar onde o orgulho é ferido.

Não sinto peso de estar distante
onde tange caminho de luta sobra rastro e dor
ceifando chão onde morre desejo vem o destino
indicando naquela que leva e trás
o passo a passo errante que empurra:
vai caminhar!
_____

Conto de Ano Novo para São Paulo

Cortiços,
crianças e rostos
dos restos rotos dos Campos Elíseos.

Famintos (com vergonha) e
pratos fartos (com desconfiança)
mostram os olhos.

São Bentos, Joãos e Ifigênias.
Duques e Princesas.

Ainda planalto cercado de serras,
envolto em fumaça.
_____

Pecado

Se você for pecado,
atire
a primeira pedra
e dê
o primeiro beijo.
_____

Bilhete

Curta!
A curta vida
é.
Joguei
muita coisa fora.

Sejam felizes.


Uma homenagen: dando entrada

sábado, 22 de setembro de 2012

Almas múltiplas

*Valdomiro Santana
 
       O e outras histórias poderia ter sido dispensado, porque fica claro que Cheiro de chocolate — um sintagma forte, por causa da sensação olfativa imediata e prazerosa — é a narrativa-título do livro. Ou o conto-título. Ou a história-título. Aqui você paga tributo a seu segundo livro: Ciriaco Martins e outras histórias.
       Na folha de rosto, sim, poderia, e deveria, se o título fosse Cheiro de chocolate, aparecer: ou Histórias, ou Contos, ou Crônicas, ou Contos e Crônicas, ou (o que talvez fosse mais apropriado) Narrativas. Ou nada disso: o leitor chamaria os textos como bem quisesse. A ficha catalográfica o classifica como um livro do gênero conto e ainda o identifica: conto brasileiro.
       Mas vamos ao que na verdade importa: como li o livro. E vou começar me referindo a outro livro seu, Tiziu. Se você não tivesse experimentado a despersonalização do protagonista, o triste fim dele, não teria escrito essa novela. Quando terminou de escrevê-la, você não era mais o mesmo Roni de quando a começou. A literatura muda-nos. Tiziu é o livro mais profundamente triste que já escreveu. Começa com a derrota do protagonista; um dos signos dessa derrota é o caco de espelho em que ele se vê no guarda-roupa da pobre e feia pensão em que morava no Brás. Um homem por dentro partido. Essa derrota só faz empurrá-lo para consumar a destruição, o fim de vida, ao voltar para a roça. Partido, mutilado, aposentado por invalidez. É bem esse mesmo o diagnóstico: inválido (não valer mais nada), depois de ter São Paulo sugado todas as suas forças e até comido parte de seu corpo. Um caco.
       Falei acima em experimentação, sensação, e ressaltei a força da expressão “cheiro de chocolate”. Estímulo olfativo que o cérebro reconhece como tão agradável. Pois é fato que o gosto de chocolate, tão íntimo do cheiro, desencadeia mil reações prazerosas no cérebro, acende-o, ativa-o. E deste que é seu livro mais recente volto ao primeiro: Sabor de química. A expressão é também um sintagma lexical. Fiz uma ponte entre os dois — “de chocolate” e “de química” são os determinantes de cheiro e de sabor. Digamos, duas margens: numa, o sabor, na outra, o cheiro. O que importa é o que está no meio. Experimentar esse jogo sensorial que flui. A palavra “química” tem a acepção clara de veneno, quando se lê o conto-título. E veneno remete logo ao que é cancerígeno. Trabalhar na fábrica de química é correr o risco de contrair câncer. Diz o protagonista (cito de memória), ao sentir o desdém e até o nojo das pessoas que antes o consideravam e agora dele se afastam): “Faz mal não, cuspo o meu câncer nos seus pés”.
   
  CONJUNTO DE SIGNOS
 
        Quatro registros (ou conjuntos de signos):
        1. São Paulo: fedor, veneno, câncer, morte.
        2. São Paulo: mutilação, invalidez, desesperança, loucura. A volta de Tiziu para a roça é a volta para o vazio em si mesmo, irremissível, para o que há muito já está perdido, o rural-arcaico que a moderna era industrial-urbana transformou em cacos, desolação.
        3. São Paulo: cheiros. Os surpreendentes cheiros que o cheiro de chocolate ressuscita — “o de café socado no pilão e coado na hora, o da cana de açúcar, do melado da garapa e o da rapadura”. A reminiscência visualmente nítida do “borbulhar da rapadura já quase sólida nos tachos de cobre”. É uma crônica. Belo diálogo, belo jogo intertextual, com a crônica “O funileiro”, de Rubem Braga, em que há também cheiros da infância, de doces em tachos, forte lembrança das mãos que areavam esses tachos e já secaram, mortas. Ainda que a emoção lírica de “Cheiro de chocolate” seja entulhada pelo relato de uma pesquisa nos EUA sobre cheiros agradáveis e cheiros desagradáveis. Mas, quando essa emoção já parece perdida, no último parágrafo ela ressurge para deflagrar na memória outros cheiros: manga madura, terra molhada de chuva, água em queda da cachoeira e o corpo da primeira namorada, Clarice. Esse nome é um signo de outro sentido, o da visão, o que na imagem-lembrança está vivo, claro. Clarice: a que sempre cheirava a alecrim do campo. Note a força da palavra “caminho”, reiterada em sua crônica e, no plural, “caminhos”, na crônica do Braga.
        4. São Paulo: desterritorialização/reterritorialização no tempo e no espaço com o conto “Amor antigo”, que já comentei, o primeiro lido. Antes de continuar esta leitura: “Eu, Filipe” foge ao que poderíamos chamar de unidade temática do livro. Só você pode responder: o que significa aqui, na sequência dos textos, a recriação de momentos da vida desse apóstolo de Cristo?
       Os dois primeiros registros são equivalentes. Duas faces simétricas da fábrica de perversidades que é SP: quando não mata, aleija. Não se trata de dizer que SP é cruel. Toda cidade o é. E quando se volta ao burgo natal, este não é mais o que era. Não há mais referências. Por isso toda volta é triste, e pode ser até trágica. Não há paraíso; ou, como já foi dito, paraíso é sempre o que se perdeu. Os dois momentos mais altos do livro são, a meu ver, “Amor antigo” (registro 4), por causa do que eu já lhe disse, e a narrativa-título (registro 3): ambos captam as diferentes cidades que existem dentro de SP.   
       Quem leu seus outros livros e bem se lembra do primeiro, perceberá uma distância infinita em relação a Cheiro de chocolate e outras histórias. Só neste são possíveis textos como “Observador de pássaros” e “A flor do meu bairro”, os dois outros momentos que permitem dizer: SP também é isso. Conta, e muito, o tempo de 36 anos que medeia entre o primeiro livro e este. Lá atrás, naqueles contos, a sensação de SP pesada, saturada de venenos, um molde. Agora, a rarefação de tudo, uma sensação de modulação. Não que a cidade tivesse se humanizado, mas a leitura deixa entrever que o leitor daquele livro e o deste, tanto quanto você, o autor, é uma pessoa feita de muitas almas.
       Afinal, reconhecer os muitos pedaços de SP não deixa de ser a experimentação do sentimento de pertencer a eles. E também, em meio ao que é a megalópole, a tantos acontecimentos intensamente vividos, aqui e ali sentir que certos registros humildes e esquecidos, uma flor, um pássaro, já são, e docemente, coisas suas, de você, o autor, e do leitor. E esse sentimento, essa emoção, é o que o livro passa. Foi com leveza d'alma que o li.
 
  *Jornalista, mestre em Literatura e Diversidade Cultural pela UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana), Valdomiro Santana é autor dos livros O dia do Juízo (contos, 1986), Literatura baiana 1920-1980 (1986; 2ª edição revista e Ampliada, 2009) e Pastelaria Triunfo (crônicas, 2005). Organizou e prefaciou as antologias O conto baiano contemporâneo (1995) e Os melhores contos de Wander Piroli (1996).

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

"Escrevo sobre o que sou"

Mineiro de Campanário, no Vale do Rio Doce, Roniwalter Jatobá chegou com a cara e a coragem a São Paulo há 40 anos, depois de ter vivido no sertão da Bahia e em Salvador. Na capital paulista, para sobreviver, fez de tudo: trabalhou como ajudante de almoxarifado, apontador gráfico e operário metalúrgico, até conseguir se formar em jornalismo. Foi a partir daí que a literatura entrou na sua vida. Isso ocorreu na década de 1970 e, desde então, Roniwalter já escreveu muitos livros, a maioria retratando o que conhece de perto: a dura realidade dos migrantes mineiros e nordestinos em busca de uma vida melhor em São Paulo. Atualmente às voltas com uma história que se passa na Chapada Diamantina, Roniwalter acaba de lançar três livros. "Pertenço à ala dos ficcionistas brasileiros ligados à realidade", confessa o autor, que também se dedica a produzir literatura para jovens. "Há um limbo entre a produção para crianças e adultos", avalia  Roniwalter em entrevista ao Pensar.(Carlos Herculano Lopes)

Estado de Minas -- Você acaba de lançar três livros: O jovem Monteiro Lobato, a novela Alguém para amar a vida inteira e Cheiro de chocolate e outras histórias. Em que circunstâncias estes livros nasceram, dá para falar um pouco de cada um?
Roniwalter Jatobá -- O ano de 2012 foi realmente produtivo em relação a lançamentos. Mas, embora os três livros tenham sido editados ao mesmo tempo, em cada um deles houve um trabalho individual, cada um à sua maneira. O jovem Monteiro Lobato, que faz parte da coleção “Jovens sem fronteiras” da Editora Nova Alexandria, por exemplo, foi objeto de uma longa pesquisa que durou mais de um ano. Além de buscar informações em livros, revistas e jornais antigos, estive duas vezes na região de Taubaté, no interior paulista, para visitar os lugares percorridos pelo criador do Sítio do Pica-pau Amarelo, um pioneiro e mestre da literatura infanto-juvenil no País. Já Alguém para amar a vida inteira, editado pela Editora Positivo, é um romance que escrevo e reescrevo há mais de cinco anos, e conta uma história de amor na periferia fabril de São Paulo. Quanto a Cheiro de chocolate e outras histórias, este é um livro que revela o meu sentimento de amor e ódio por São Paulo. Afinal, faz quarenta anos que vivo na metrópole e, por isso, os contos mostram a minha relação com a cidade. No primeiro texto, por exemplo, trato com delicadeza a história de antigos namorados que se reencontram na Avenida Paulista, e que recordam de momentos vividos em Paris e dos projetos que tinham juntos. Sobre este livro, o jornalista, escritor e crítico literário Renato Pompeu escreveu que “a literatura sempre avança em relação à mais requintada teoria literária. O principal teórico do realismo crítico, o húngaro György Lukács, julgava que não era possível fazer arte a partir do singular, por não ser universal. Somente a partir do singular-universal, ou seja, a partir do particular, é que seria possível fazer arte. Mas Roniwalter Jatobá, neste livro Cheiro de chocolate e outras histórias, prova o contrário. Ele chega a estesias melancólicas e encantadoras, a puros enlevos, a partir de uma féerica feira de singularidades; o conjunto se torna universal.”

Estado de Minas -- Você é considerado um dos grandes cronistas da vida operária brasileira, que já retratou em vários livros. Você concorda com isto? Por quê?
Roniwalter Jatobá -- Assumo que a minha literatura tem um tom confessional, uma vez que revisito sempre os lugares em que vivi, tentando mapear as minhas andanças. Toda a minha literatura vem da reconstrução literária da vivência e da experiência nas constantes migrações entre Campanário (onde nasci), Campo Formoso e Bananeiras (onde vivi) e São Paulo (onde moro). Quanto ao pioneirismo ao retratar a vida operária e a importância de alguns livros meus, como Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura, 1976), Crônicas da vida operária (Finalista do Prêmio Casa das Américas 1978, em Cuba) e Paragens (Finalista do Prêmio Jabuti 2005, São Paulo), quem fala sempre sobre isso é o escritor mineiro Luiz Ruffato. Ao defender sua tese, Ruffato mostra que o operário, como personagem, foi pouco retratado na literatura brasileira. Segundo ele, antes dos meus textos, o trabalhador urbano só podia ser entrevisto em um que outro romance – O cortiço, de Aluísio Azevedo, de 1890, Os corumbas, de Amando Fontes, de 1933, O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, de 1935 – ou em um que outro conto – de autores como Mário de Andrade e Alcântara Machado.

Estado de Minas -- Foi a partir de sua própria vivência como operário metalúrgico e gráfico que você partiu para explorar este universo?
Roniwalter Jatobá -- Sim. Sou um dos poucos autores que escrevem sobre o migrante nordestino. Não tenho intenção de mudar de assunto ou mesmo buscar modismos, o que é comum em grande parte dos escritores brasileiros. De certa forma, busco devolver ao leitor aquele Brasil que já esteve presente em nossa literatura de ficção, sobretudo a partir dos anos 30, que tanto ajudou na formação de uma consciência nacional. Escrevo sobre a vida que conheci como nordestino migrante, motorista de caminhão, trabalhador de construção civil e fábrica, buscando condições melhores em São Paulo. Não tive nenhuma intenção de tratar cientificamente fatos e personagens, não levantei teses sociais. Minha partida, claro, foi a experiência real, porém não escrevi como historiador, antropólogo ou sociólogo, muito menos cultivando correções políticas – e sim como escritor.

Estado de Minas -- Como é para você dar voz a esta grande massa de invisíveis pela sociedade brasileira?
Roniwalter Jatobá -- Desde o começo da década de 1970 venho escrevendo sobre o trabalhador em São Paulo, principalmente o migrante mineiro e nordestino que vive na metrópole. Pertenço à ala dos ficcionistas brasileiros ligados à realidade, e com o fito de comprovar a existência de uma temática nossa, brasileira, longe de esgotar-se. Escrevo com o que sou. Sou o que há de mim, apenas.

Estado de Minas -- O que ficou na sua literatura da sua vivência no interior de Minas e no sertão da Bahia?
Roniwalter Jatobá -- A minha vivência desse período é marcante na minha literatura. A infância e a adolescência são momentos ricos para o escritor e para a sua obra. Nasci em Campanário, norte mineiro, em 1949. Meus pais eram baianos, estavam ali desde o final da II Grande Guerra, quando buscaram Minas para tentar a sobrevivência. Em 1960, minha família voltou para o sertão baiano nas proximidades da cidade de Campo Formoso. E essa volta foi importante para mim. Vivendo na casa de um tio, entrei num colégio protestante para fazer o ginásio e, ali, descobri a literatura. Em 1964, terminei o ginásio, mas meu pai não tinha condições de me enviar para Salvador para continuar os estudos. Com quinze anos, a minha perspectiva era trabalhar na roça ou ajudar meu pai, que possuía um velho caminhão. Virei, então caminhoneiro. Depois de servir o Exército em Salvador, vim para São Paulo, em 1970, e fui morar no bairro de São Miguel Paulista. Era fevereiro. Até abril bati muita perna em busca de trabalho. Na Nitroquímica, a maior fábrica de São Miguel, e que empregava quase todo mundo que chegava da Bahia, não tinha vaga. Rodei a cidade inteira até que, um dia, consegui uma vaga de ajudante de almoxarifado na Karmann-Ghia, em São Bernardo do Campo. Fiquei três anos empurrando carrinho cheio de peças para a produção. Em 1973, saí e entrei na Abril, como apontador de produção na gráfica. A partir daí, auxiliado pela empresa, fiz supletivo colegial e, depois, pude me formar em jornalismo. Foi na escola que comecei a escrever os primeiros trabalhos. Eram contos e, em todos eles, o cenário era a periferia paulistana ou os dramas dos migrantes na sua vinda. Virei, então, escritor e jornalista. Enquanto trabalhava em Versus, Movimento e publicações da Abril, continuei a escrever. Aí, um dia, mandei um conto para a revista Ficção, no Rio, e outro para a Escrita, em São Paulo. Ganhei os dois prêmios e não parei mais.

Estado de Minas -- Por falar nisto, parece que de uns tempos para cá tem havido uma tendência muito grande de urbanizar a literatura brasileira. Como você vê isto?
Roniwalter Jatobá -- É um processo natural. Ao contrário de décadas atrás, a maioria da população mora hoje nas cidades, que, violentas e brutais, se tornaram fonte de inspiração para quem escreve e vive nelas. Estado de Minas -- Você também fez suas incursões na literatura infanto-juvenil. Fale um pouco sobre esta experiência. Roniwalter Jatobá -- Há escassez de bons textos para o público jovem. Num limbo entre o leitor adulto e o infantil, os jovens sentem falta de uma literatura que aponte rumos num momento de formação da sua personalidade. Por isso, tenho escrito bastante para jovens. Viagem ao outro lado do mundo, publicado em 2009 pela Editora Positivo e que conta a história de um menino interiorano perdido em São Paulo, é um grande sucesso. Outro sucesso é O jovem JK, a biografia de um grande político e rica de aventuras e exemplos de vida. Nesta obra narro a infância e a adolescência de uma pessoa interessante da história num caldeirão em que se misturam experiências de vida, fatos e, para torná-lo de agradável leitura, uma pitada de ficção.

Estado de Minas -- E a experiência como jornalista, ajudou na literatura? O que anda fazendo atualmente?

Roniwalter Jatobá -- Gosto do exemplo do norte-americano Ernest Hemingway. Ele dizia que fazer jornalismo leva o escritor a escrever com clareza e simplicidade. Mas é bom lembrar que a literatura exige algo a mais, pois nela é essencial entrar na consciência dos personagens, inclusive em suas idealizações. O profissional da notícia precisa da capacidade de se concentrar em meio ao imediatismo das ocorrências diárias. O escritor precisa de tempo para observar, analisar, compreender e se aprofundar. Atualmente, escrevo um romance histórico, cuja história se passa em 1926, na Chapada Diamantina, Bahia, durante a grande saga da Coluna Prestes na região. Pesquiso o assunto há anos e acho que já estou amadurecido para mergulhar nessa fascinante aventura.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Eduardo Miranda respira James Joyce em Dublin


Em entrevista ao Blog da Ateliê, o tradutor, músico e poeta falou da relação de “amor e ódio” entre Joyce e Dublin. Eduardo Miranda chegou à final do Concurso de Tradução Bloomsday 2011 e publicou sua tradução na revista eletrônica TUDA.
Como foi seu primeiro “encontro” com a obra de James Joyce?
Joyce me chegou primeiro através de Ulisses, ainda muito jovem – praticamente ilegível para mim na época. Depois fui cronologicamente retrocedendo: Retrato do Artista Quando JovemDublinenses, e depois a poesia… mas foi em Dublin que tive a oportunidade de me envolver mais com a literatura e a cultura irlandesa – inclusive com a língua irlandesa – e consequentemente com James Joyce. Foi aqui em Dublin, durante a comemoração dos 100 anos de Ulisses,  que pude percorrer o caminho que Leopold Bloom percorreu, no mesmo passo que o livro.
Fale um pouco sobre a obra e vida de James Joyce, segundo a sua experiência.
Na verdade foi depois da minha mudança para Dublin por motivos de trabalho que vim a me interessar mais pela obra de Joyce – e tudo em Joyce é Dublin! E entender essa relação de amor e ódio foi um desafio… Joyce deixou claro em vida que não gostava de Dublin. Stephen Joyce, neto e curador da obra de Joyce, faz questão de afirmar que seu avô não gostava da cidade. Tampouco ele simpatiza com Dublin, e desaprova toda tentativa de citar a obra do avô, seja para turismo, nomeação de monumentos, ou mesmo comemorações. O único lugar onde é permitido citar a obra de Joyce é no James Joyce Centre, durante as comemorações do Bloomsday, festival que acontece todo dia 16 de Junho e que comemora as aventuras de Bloom.
Como é traduzir James Joyce?
Primeiramente acho que todos os que se submeteram ao desafio de traduzir o Finnegans Wake – e não só os finalistas – já são heróis pela própria ousadia. Para mim foi uma tarefa trabalhosa, tanto que consumiu quase todas as minhas horas livres de uma semana inteira! Mas ao mesmo tempo foi excitante e divertida… uma aventura e tanto! E o fato de morar em Dublin e de ter um certo conhecimento da língua irlandesa – mesmo que parco –  fez com que eu me sentisse, de certa maneira, mais próximo dos contextos joyceanos, e acho que acabou ajudando um pouco a transposicão multi-dimensionais do texto… além, é claro, de um pouco de intuição e muita poesia!
Fale um pouco de você e do seu trabalho.
Não sei se posso chamar de trabalho, no sentido convencional da palavra. É mais como um hobby, só que levado muito à sério… extremamente! Mas o tempo é que não ajuda muito. Como tenho o meu trabalho na área de Tecnologia da Informação, acabo dedicando apenas o tempo que sobra às outras atividades. Trabalho e família vêm primeiro e, às vezes, o que sobra não é muito. Tento ser constante na TUDA, uma e-zine de poesia, literatura e arte que publico mensalmente, já há 3 anos. É lá que publico minhas traduções. Minhas poesias, meus contos e outros textos podem ser acessados à partir de um “portal” que mantenho, o edotm.info. Já na música, tenho um projeto experimental e multi-instrumental, à distância, chamado The Virtual EM3, e uma banda real, o Wellfish. Conforme o tempo permite, vou “trabalhando”….
Eduardo Miranda

segunda-feira, 28 de março de 2011

Crônicas do mundo ao revés

Novo livro de Flávio Aguiar foi lançado em 17/3/2011 em São Paulo. Roniwalter Jatobá vê emergência da literatura dos anos de chumbo.


“Arte Memorável”,

por Roniwalter Jatobá

Anos atrás, início da década de 1990, alguém perguntou para mim por que a nossa literatura pouco enfocava o triste período do regime militar. Lembro bem do que respondi: “Dê tempo ao tempo”. Assim, pouco a pouco, muitos fatos têm vindo à tona, sobretudo em textos memorialísticos, mas também na literatura. Os dramas vividos naqueles duros tempos da ditadura, por sinal, servem de tema para o professor e escritor Flávio Aguiar nestas Crônicas do mundo ao revés. As quatro primeiras histórias, num total de dezenove, mostram situações muito além do que é claramente visto, seja narrando uma noite de medo e amor de um casal atuante na luta armada num esconderijo urbano cercado pela polícia, seja a angústia do guerrilheiro que, para resolver seus problemas advindos com a tortura, procura no exílio a ajuda de um psicanalista. Mas o livro toma outros rumos. Honrando a tradição de bons contadores de histórias, que combinam a simplicidade da arte de narrar com a abordagem de questões mais complexas, como fizeram o argentino Jorge Luís Borges e o uruguaio Juan José Morosoli, Flávio Aguiar recupera, num clima de ficção e realidade, o sentimento daquele exato momento da vida de suas personagens. Em “O ninho”, por exemplo, a temática é o amor. De forma surpreendente, um homem conquistador é seduzido por uma charmosa mulher, mas, após alguns dias de muito prazer, ela o deixa para ir em busca do próprio destino. Já em “A tinturaria”, dois amigos e filhos dos pampas brasileiro e uruguaio, tão parecidos quanto diferentes, viajam para Caracas, na Venezuela, para o Fórum Social Mundial, e, após vários desencontros, voltam fascinados e apaixonados por uma mulher apelidada de Pan de Azúcar. Noutra direção, em “História de família”, o autor procura suas raízes alemãs e, em “Ai de ti, 64”, relata a trajetória de um oficial da Aeronáutica para com quem o povo e a cidade de Porto Alegre têm uma dívida imorredoura, pois foram salvos por ele e outros militares de um bombardeio criminoso. O gaúcho Flávio Wolf de Aguiar, nascido em Porto Alegre em 1947, sempre nos iluminou em todas as atividades às quais se dedicou no mundo da cultura. Foi assim como professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo, romancista, antologista, contista, crítico literário e analista político. Agora, de novo, nos surpreende como cronista. Ou melhor: como um excelente contador de histórias, numa arte memorável, generosa, densa e repleta da condição humana.

terça-feira, 9 de março de 2010

TUDA - Revista de Poesia, Literatura & Arte


... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos, de todas as qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que de fato conta... de TUDA !!!


É a Março TUDA – Primavera no ar ou quase!

Por nem TUDA ser tão fácil como parece, apelo novamente as novas regras para a colaboração em TUDA - Leia >>aqui<< - confira também o Calendário Permanente Tudiano, e saiba todas as datas para não perder nado de TUDA.

Este mês TUDA traz as Palavras Quebradas de Arnaldo Xavier, Souzalopes, Luiz Roberto Guedes, Santiago de Novais, Sandra Ciccone Ginez, Dorival Fontana, Rafael Mantovani, Túlia Lopes e Adriana Pessolato. As Palavras Contínuas de Roniwalter Jatobá, José Geraldo de Barros Martins, José Miranda Filho, Jeanette Rozsas e Leonardo André Elwing Goldberg. Nas Palavras Alheias, o espanhol Antonio Gamoneda. Oswald de Andrade está nas Foreign Words, Raul Bopp em Palavras Já Ditas. As Palavras Mostradas de José Geraldo de Barros Martins, o britânico Banksy, Eduardo Miranda e Aristides Klafke. Nas Palavras Ensaiadas, Ronald Augusto.

Opinem, opinem sempre!

Agora, como de costume, é só degustar, deglutir, triturar... TUDA à vontade. Pode até lamber os dedos que TUDA é limpinha... limpinha mas contagia. E como contagia! Por isso, aprecie TUDA SEM NENHUMA MODERAÇÃO. Ela só é contra a INDIFERENÇA!!!

Na luta, companheiros... e TUDA, mas TUDA de bom MESMO!!!

O (auto-proclamado) Editor!

P.S.: Dicas de TUDA:
  • O Conteúdo - fica à direita da página, e dá acesso aos textos da edição do mês corrente;
  • TUDO DE TUDA POR ASSUNTO - pode-se aqui acessar tudo o que já foi publicado em TUDA por gênero - poesias, contos, ilustrações, críticas etc...;
  • TUDO DE TUDA POR AUTOR - Busca por autores/artistas já publicados em TUDA;
  • DIGA TUDA - Aqui você pode mandar a sua crítica & opinião;
  • ENVIANDO TRABALHOS PARA TUDA - tudo o que você precisa saber para colaborar! Aproveite TUDA isso!
  • TUDA DE ANTES - Todas as TUDAS anteriores;
  • Navegação página a página - Clique nos links "Older Posts" e "Newer Posts" no rodapé da página para avançar ou retroceder uma página, como numa revista de verdade... não que não seja!
ATENÇÃO: Se você deseja se auto-EXCLUIR do SPAM CULTURAL DA TUDA, mande um email com a palavra EXCLUIR no assunto para o endereço tuda.papel.eletronico@googlemail.com. Essa é a única maneira de exclusão. Caso contrário, desfrute TUDA que tem direito!!!

domingo, 6 de dezembro de 2009

A voz do proletariado, sem mistificação ou caricatura






Ronaldo Cagiano*, Jornal Opção, Goiânia, 6 de dezembro de 2009

Se­le­ci­o­na­dos por Lu­iz Ruf­fa­to, “Con­tos An­to­ló­gi­cos de Ro­niwal­ter Ja­to­bá” é uma da­que­las obras in­dis­pen­sá­veis pa­ra se entender o pro­le­ta­ri­a­do bra­si­lei­ro. A vi­da da clas­se tra­ba­lha­do­ra ur­ba­na, for­ma­da por le­gi­ões de mi­gran­tes, é o uni­ver­so que Jatobá re­cri­ou






A re­cen­te edi­ção de “Con­tos An­to­ló­gi­cos” pe­la Edi­to­ra No­va Ale­xan­dria, re­u­nin­do os me­lho­res tra­ba­lhos des­se gê­ne­ro pro­du­zi­dos ao lon­go de trin­ta anos por Ro­niwal­ter Ja­to­bá, não só vem mar­car a pre­sen­ça de uma das grandes vo­zes da fic­ção con­tem­po­râ­nea bra­si­lei­ra, co­mo pre­mi­ar ao lei­tor com uma pro­sa do mais al­to pa­drão, naqui­lo que ele in­cor­po­ra co­mo ex­pres­são de uma qualida­de nar­ra­ti­va, co­mo pe­lo que re­pre­sen­ta de re­tra­to sin­ce­ro e po­é­ti­co de um ex­tra­to so­ci­al e hu­ma­no. Além de Aman­do Fon­tes (“Os Co­rum­bas”) e Jo­sé Lins do Re­go (“Mo­le­que Ri­car­do”), na li­te­ra­tu­ra bra­si­lei­ra pou­cos são os au­to­res que mer­gu­lha­ram na re­a­li­da­de pro­le­tá­ria não ape­nas pa­ra es­bo­çá-la, co­mo tam­bém re­fle­tir so­bre es­se mun­do tão es­que­ci­do. A vi­da pro­le­tá­ria, quan­do é lem­bra­da (e na fic­ção das no­vas ge­ra­ções é tra­ta­da com su­per­fi­ci­a­li­da­de, ou solenemen­te ne­gli­gen­ci­a­da), con­ver­te-se de ca­ri­ca­tu­ra ou des­cam­ba pa­ra um pro­ta­go­nis­mo secun­dá­rio. Mui­tas ve­zes, o tra­ba­lha­dor bra­çal da cons­tru­ção ci­vil, o em­pre­ga­do de co­mér­cio, o me­ta­lúr­gi­co, o ope­rá­rio das má­qui­nas das in­dús­tri­as, o mo­to­ris­ta de ôni­bus, por exem­plo, não pas­sa­ram de me­ro co­ad­ju­van­tes de uma his­tó­ria prin­ci­pal, em que o do­no do po­der, da for­ça de tra­ba­lho ou do ca­pi­tal é que do­mi­nam o dis­cur­so nar­ra­ti­vo. Se­le­ci­o­na­dos por Lu­iz Ruf­fa­to, “Contos An­to­ló­gi­cos de Ro­niwal­ter Ja­to­bá” é uma da­que­las obras in­dis­pen­sá­veis pa­ra se entender o pro­le­ta­ri­a­do bra­si­lei­ro a par­tir de uma mi­ra­da pes­so­al, que foi re­ti­rar da so­fri­da traje­tó­ria dos tra­ba­lha­do­res bra­si­lei­ros que vi­e­ram bus­car uma ou­tra vi­da (e mui­tas ve­zes nem sem­pre a en­con­tra­ram) ma­té­ria e cir­cun­stân­cia pa­ra tra­du­zir, sem equí­vo­cos e sem ro­dei­os, a pro­ble­má­ti­ca so­ci­al, eco­nô­mi­ca e cul­tu­ral. Tra­ta-se de uma vi­são sub­ja­cen­te à pre­sen­ça dos mi­gran­tes co­mo for­ça de tra­ba­lho que se cons­ti­tu­í­ram em mo­la pro­pul­so­ra da ri­que­za bra­si­lei­ra a par­tir da dé­ca­da de 50, quan­do o Pa­ís co­me­ça a vi­ver uma in­ten­sa me­ta­mor­fo­se, sal­tan­do de uma eco­no­mia agrá­ria pa­ra um ca­pi­ta­lis­mo in­dus­tri­al e ur­ba­no, e nes­ses con­tos o au­tor per­mi­te ao lei­tor co­mum per­ce­ber que es­sa trans­for­ma­ção pro­por­ci­o­na­da pe­lo in­dus­tri­a­lis­mo do pós-guerra e da era JK im­pôs um cus­to so­ci­al e hu­ma­no sem pre­ce­den­tes, ten­do as mi­gra­ções internas um pa­pel pre­pon­de­ran­te nes­se pro­ces­so. Ja­to­bá, que é mi­nei­ro (nas­ci­do em Campanário), mas pas­sou boa par­te de sua vi­da na Ba­hia, co­nhe­ce de per­to es­se uni­ver­so, as dores e afli­ções dos boi­as-fri­as, dos sem-ter­ra, dos fa­min­tos, dos sem-op­ção e ex­cluí­dos de to­dos os gê­ne­ros, que tro­cam as re­gi­ões mais po­bres do Pa­ís. In­te­gra a imen­sa le­gi­ão dos que che­ga­ram em São Pau­lo “pa­ra ven­cer na vi­da” e ten­do si­do ope­rá­rio, mo­to­ris­ta, em­pre­ga­do de in­dús­tria grá­fi­ca, an­tes de se for­mar em jor­na­lis­mo. É so­bre os que vi­e­ram aven­tu­rar-se, co­mo ele, no sonho do em­pre­go, do sa­lá­rio e de ou­tra sor­te na vi­da, pa­de­cen­do a sa­u­da­de, a so­li­dão e a insulari­da­de di­an­te dos de­sa­fi­os dos gran­des cen­tros, que o au­tor vem fo­can­do seus con­tos e no­ve­las, des­de su­as pri­mei­ras pro­du­ções. Co­mo em “Sa­bor de Quí­mi­ca”, “Ti­ziu”, “Crô­ni­cas da Vi­da Ope­rá­ria” e “Pás­sa­ro Sel­va­gem”, sua pre­o­cu­pa­ção é com o des­ti­no des­se tra­ba­lha­dor des­lo­ca­do, fru­to (ou ví­ti­ma) dos pro­ces­sos mi­gra­tó­rios. E o au­tor es­cre­ve mes­clan­do a cru­e­za de su­as vi­das com a de­li­ca­de­za da lin­gua­gem, nu­ma pro­fun­da re­ve­rên­cia es­té­ti­ca àque­les que, com sua mão-de-obra ba­ra­ta trou­xe­ram ape­nas “du­as mãos e o sen­ti­men­to do mun­do” e na for­ça bru­ta de sua ilu­são fo­ram ca­pa­zes de su­pe­rar até mes­mo as no­vas do­res e ou­tros fra­cas­sos, pa­ra ali­men­tar o de­se­jo de um dia ven­cer e vol­tar pa­ra su­as ori­gens, um pou­co me­lho­res do que che­ga­ram, com a (im)pro­vá­vel fe­li­ci­da­de na ba­ga­gem.
An­tes re­le­ga­dos (co­mo bem ilus­tra a his­tó­ria de Ja­cin­to no con­to “Re­mor­sos”, abai­xo tran­scri­to) à pró­pria sor­te em su­as re­mo­tas e trá­gi­cas ori­gens, os per­so­na­gens re­co­lhi­dos por Ja­to­bá no imen­so cal­dei­rão ur­ba­no são a tra­du­ção mais cru­el do ins­tin­to de so­bre­vi­vên­cia que im­pul­si­o­na o ho­mem e que mui­tas ve­zes, por fal­ta de op­ção lá nos seus rin­cões mais inós­pi­tos, su­jei­tam-se a um tra­ba­lho ár­duo. Pre­mi­dos pe­la fal­ta de em­pre­go, pe­la mi­sé­ria, pe­la se­ca e ou­tras tan­tas priva­ções, não se ame­dron­tam em ar­ris­car a pró­pria vi­da nas cons­tru­ções, nos tor­nos, nas roldanas, nos ser­vi­ços in­se­gu­ros e até nos tra­ba­lhos in­dig­nos, per­den­do às ve­zes de­dos, mãos e fi­lhos pa­ra a avas­sa­la­do­ra en­gre­na­gem de um ca­pi­ta­lis­mo que re­ti­ra do ser até mes­mo o amor pró­prio, porque a fo­me ba­te à por­ta e o tra­ba­lho (mui­tas ve­zes ex­plo­ra­tó­rio e opres­si­vo) é o que res­ta con­tra as mes­qui­nhas con­tin­gên­cia da vi­da que um dia aban­do­nou em bus­ca de ou­tras con­di­ções. Nas vo­zes de Ger­ma­nos, Zé­li­as, Ja­cin­tos, To­ni­cos, San­ti­nas, Ci­rí­a­cos e ou­tros tan­tos sem no­me, sem ros­to e sem do­cu­men­to que apor­ta­ram à imen­sa sel­va de pe­dra pau­lis­ta­na, Ro­niwal­ter Jatobá dá vi­da a mui­tos que sem­pre vi­ve­ram con­de­na­dos a ne­nhu­ma. E nes­se fler­te par­ti­cu­lar com su­as vi­das e es­pe­ran­ças, re­al­ça a im­por­tân­cia dos que do­a­ram to­do seu es­for­ço, su­or, lá­gri­mas e mui­tas ve­zes a sua vi­da (e a dos seus) pa­ra cons­tru­ir não ape­nas um so­nho ín­ti­mo, mas o de um Pa­ís me­lhor, em cu­jo fu­tu­ro não hou­ves­se ne­ces­si­da­de de ou­tras his­tó­ri­as se re­pe­ti­rem com a sin­gu­la­ri­da­de trá­gi­ca das vi­das que Ro­niwal­ter re­co­lo­ca com jus­ti­ça e co­mo ho­me­na­gem nes­ses con­tos pun­gen­tes e de pro­fun­da hu­ma­ni­da­de.





Leia um con­to de Ro­niwal­ter Ja­to­bá




Re­mor­sos



Ja­cin­to viu, nu­bla­do, por du­as ve­zes, as en­fer­mei­ras pas­sa­rem por ele apres­sa­das, olha­rem pa­ra a sua ca­mi­sa su­ja de san­gue e se per­de­rem no cor­re­dor em fren­te. A in­se­gu­ran­ça no tra­ba­lho, a co­ra­gem, es­sas, sim, fi­ca­ram no ter­re­no da cons­tru­ção, bem pró­xi­mo à ca­sa da sua mãe. A escada em fal­so tom­bou en­tre bal­des, tin­tas e afli­tos: aco­de o ho­mem! Pen­du­ra­do en­tre gar­ra­fas pon­ti­a­gu­das, que­bra­das, que for­ma­vam bar­rei­ras no al­to mu­ro vi­zi­nho, Ja­cin­to nes­sa ho­ra so­men­te sen­tia o frio da que­da, o pa­vor de mor­rer. O pei­to, num ras­go pro­fun­do, di­la­ce­ra­do, em san­gue. Os gri­tos que eco­a­vam pe­las ca­sas vi­zi­nhas não in­ter­fe­ri­ram na tra­je­tó­ria do lí­qui­do ver­me­lho que su­ja e es­cor­re pe­los vi­dros, se es­par­ra­ma, tor­nan­do o bran­co do mu­ro uma cor ru­bra e re­al.


As fra­ses de Ja­cin­to, da mãe, da me­ni­na­da que cor­ren­do avi­sa, se in­ter­li­gam — Que pen­sa­ção em mor­rer!; meu fi­lho mor­reu!; ain­da não mor­reu não! — em eco tris­te no mo­vi­men­to da tar­de.


A sa­la do hos­pi­tal, mes­mo com o sol lá fo­ra, não ti­nha um ja­ne­lão que dei­xas­se a cla­ri­da­de en­trar. A luz ace­sa du­ran­te o dia da­va um bri­lho es­tra­nho, ama­re­lo, às pes­so­as que ocu­pam as qua­tro cadeiras e o pe­que­no so­fá ras­ga­do no en­cos­to. O re­gis­tro na car­tei­ra pro­fis­si­o­nal não abriu portas nem fez mu­dar sem­blan­tes; ro­ti­na, es­pe­ra. Na sa­la exí­gua po­dia ou­vir as pa­la­vras, pou­co usa­das, dos que com­pu­nham o in­te­ri­or. Num can­to, o an­ci­ão que res­pi­ra des­com­pas­sa­do, dificulto­so, des­cren­te da vi­da, olha pa­ra as pró­pri­as mãos, in­di­fe­ren­te ao mo­vi­men­to, bur­bu­ri­nho do hos­pi­tal. Ve­zes se­gui­das, a mãe de Ja­cin­to, gor­da, ves­ti­do azul tro­ca­do às pres­sas, en­trou no ba­nhei­ro no fi­nal do cor­re­dor pa­ra la­var o pa­no que lim­pa­va o san­gue que es­cor­ria de­le. No banhei­ro, as pes­so­as que aguar­da­vam na fi­la, de­sin­qui­e­tas, re­cla­ma­vam da vi­da, da pró­pria fi­la, de tu­do.


— Mãe, vou mor­rer! — dis­se Ja­cin­to, res­pi­ran­do for­te, fra­co. Ele olhou os pés su­jos de ter­ra, o teto e os avi­sos co­la­dos na pa­re­de. Ten­tou ler, mas não con­se­guiu. Nem via no am­bi­en­te fe­cha­do, si­len­cio­so, sen­ti­men­tos de tris­te­za, so­li­dão, me­do. Pes­so­as an­sio­sas por aten­di­men­to, pe­din­tes, que fi­cam pa­ra­das, co­la­das em du­ras ca­dei­ras e têm os cor­pos do­lo­ri­dos pe­la lon­ga es­pe­ra, mas não per­am­bu­lam pe­lo cor­re­dor, com re­ceio de in­co­mo­dar. Elas es­pe­ram que as si­tu­a­ções di­gam mais, mui­to mais que as pa­la­vras que a cus­to sai­ri­am de su­as bo­cas me­dro­sas de fa­lar. E es­pe­ram. Ar­re­ne­gan­do da ho­ra em que, do­en­tes, têm pre­ci­são. A si­re­ne da am­bu­lân­cia que se apro­xi­ma vai au­men­tan­do, au­men­tan­do, até dis­si­par os sus­sur­ros que es­ca­pa­vam no si­lên­cio. A am­bu­lân­cia atra­ves­sa ren­te ao cor­re­dor, ve­loz co­mo a dor de Ja­cin­to. Ele sen­te pon­ta­das e frio no co­ra­ção. Ele de­li­ra in­con­sci­en­te, ima­gi­nan­do. Viu de­sa­pa­re­cer na ma­nhã o or­va­lho que tei­ma em con­ti­nu­ar nas fo­lhas frá­geis e mi­nús­cu­las. Sol­tou das mãos que o se­gu­ra­vam e al­çou um voo rastei­ro, de­pois su­biu na imen­si­dão do es­pa­ço que se­pa­ra a vi­da da mor­te. Pai­rou de asas abertas. Gru­dou-as no cor­po é sol­tou-se no es­pa­ço das lem­bran­ças, ora dis­tan­tes, ora bem próximas, que da­vam a im­pres­são de que ele par­ti­ci­pa­va. Sen­tiu re­mor­sos na des­tru­i­ção de vidas: for­mi­gas, nam­bus de pés ro­xos, nam­bus de pés ver­me­lhos, ara­nhas, pás­sa­ros, pre­ás, coelhos, o ma­tar de fran­gos em di­as de fes­tas. Deu von­ta­de de fe­char as asas e pre­ci­pi­tar es­te pe­que­no cor­po de en­con­tro às min­gua­das fo­lhas, em ba­que sur­do na ter­ra. De re­pen­te, gri­ta. Ja­cin­to so­nha com o seu pró­prio vul­to que, de ca­be­ça er­gui­da, gri­ta e as­so­bia pa­ra os ca­chor­ros que pas­sam. Ti­nha sa­í­do lo­go ce­do, sem ca­mi­nho cer­to, ven­do o mun­do. An­dou até a pon­te do rio, de cos­tas, con­tan­do os pas­sos, pi­san­do for­te pa­ra dei­xar na areia fo­fa o ras­tro. Co­mo se na­da pu­des­se apa­gar a sua pas­sa­gem. Fi­cou aca­ri­cian­do um ra­mo de ur­ti­ga bra­va nos bra­ços pa­ra sen­tir a co­cei­ra en­trar de­va­ga­ri­nho no cor­po. Era lou­cu­ra. Brin­ca­dei­ra de cri­an­ça. A gen­te cres­ce. Quan­do co­me­ça a des­co­brir que o do­ce de go­i­a­ba fei­to na co­zi­nha es­fu­ma­ça­da vai fi­can­do com sa­bor di­fe­ren­te, fi­ca adul­to. De pé, en­cos­ta­do à cer­ca, Ja­cin­to vê for­mi­gas que cor­rem in­di­fe­ren­tes a ele, gi­gan­te que se pos­ta em fren­te. Ob­ser­va. A qual­quer mo­men­to, o tra­ba­lha­dor que ia à di­an­tei­ra po­de­ria ca­ir com ta­ma­nho pe­so às cos­tas. Se­guia cam­ba­le­an­te, mas não atra­pa­lha o mo­vi­men­to dos ou­tros pe­la areia quen­te, in­di­fe­ren­te à chu­va que se for­ma e vai cri­an­do co­res novas no céu. Azul... mil, in­fi­ni­tas. Na­da dis­so in­ter­fe­re na agi­ta­ção dos tra­ba­lha­do­res que se tor­na mais ve­loz e pre­ci­sa no fi­nal da tar­de. O tra­ba­lha­dor da fren­te ago­ra se fir­ma em um mon­te de ter­ra, es­co­ra a car­ga e, sem per­der a di­an­tei­ra, con­ti­nua gui­an­do nes­ta pe­que­na es­tra­da uma infinida­de... Co­man­da. Tra­ba­lha tam­bém. Al­guns gos­ta­ri­am de pa­rar, des­can­sar O cor­po do­lo­ri­do de lon­gas ca­mi­nha­das, mes­mo sa­ben­do que se a chu­va que se anun­cia des­mo­ro­nar os ca­mi­nhos, aí sim o tra­ba­lho do­bra­rá. As­sim, o que to­ma a di­an­tei­ra pou­co se pre­o­cu­pa com o que es­tá acon­te­cen­do à sua vol­ta. O que pre­o­cu­pa mes­mo é a car­ga pe­sa­da que ba­lan­ça ao so­pro de qual­quer gol­pe de ar. A for­mi­ga lí­der se­gue sem me­do de som­bras re­ais e gi­gan­tes­cas de Jacinto, que se con­tor­cem na es­tra­da. A bo­ta di­rei­ta de Ja­cin­to: o ob­stá­cu­lo que se in­ter­põe. Um pé em­bo­ti­na­do que, por se­gun­dos, di­fi­cul­ta. Em fi­la, cro­no­me­tra­das por um per­fei­to e pon­tu­al relógio que não ba­te as ho­ras: es­se sol que cla­reia a es­tra­da de ter­ra ba­ti­da, tri­lha­da na la­bu­ta, es­tra­da som­bre­a­da. Sol que se ras­ga em fi­os por en­tre cer­ca de ga­lhos, de er­vas da­ni­nhas que, pen­sa a lí­der, não ser­vem co­mo ali­men­ta­ção. Ca­mi­nha. Com o pe­so fa­ti­gan­te, à di­rei­ta ou à esquer­da, a vi­são é sem­pre a mes­ma. Pa­rar não, de­ve pen­sar, sem ter tem­po pa­ra brin­ca­dei­ras, pois só o tra­ba­lho é im­por­tan­te. Sem tro­car fra­ses, ab­sor­ta no ali­men­to que car­re­ga, não ri­ria, tam­bém não fi­ca­ria tris­te, so­men­te se­gui­ria seus pas­sos sem atra­sar os ou­tros. Pen­sa: um obstácu­lo que sur­ja na fren­te e que por­ven­tu­ra oca­si­o­ne mor­tos, as que re­to­mam de­vem cum­prir ra­pi­da­men­te es­sa ta­re­fa e, sem cho­rar os ca­dá­ve­res, ti­rá-los pa­ra o la­do à mar­gem da es­tra­da e ama­du­re­cer o cor­po pa­ra no­vas lu­tas. Ima­gi­na: no fim da tar­de o tra­ba­lho fin­da. De­ze­nas de corpos que fi­ca­ram lá em ci­ma es­tão à es­pe­ra de que a chu­va que co­me­ça ar­ras­te os seus cadáve­res por en­xur­ra­das pe­que­nas, mais na fren­te se avo­lu­ma, e que os cor­pos de­sa­pa­re­çam nas cor­re­dei­ras do rio, em di­re­ção de pei­xes ne­gros, ama­re­los e fa­min­tos. Ou­tras for­mi­gas apres­sa­das pe­la noi­te que se apro­xi­ma nem pa­ram no lo­cal on­de ja­zem os cor­pos. Cho­ve. Chu­va fi­na, mo­lhen­ta. Ja­cin­to ti­ra o pé que se apoia no ara­me far­pa­do e pi­sa, trai­ço­ei­ro, es­pa­lhan­do as re­tar­da­tá­ri­as tra­ba­lha­dei­ras, es­ma­gan­do mui­tas com a so­la da bo­ti­na. Uma, mais afoi­ta, defensiva, pu­la na sua per­na, e afer­roa do­lo­ri­do. Ele pe­ga a for­mi­ga en­tre de­dos e ar­ran­ca as suas pa­tas, a ca­be­ça, e jo­ga o res­to do cor­po ao chão mo­lha­do, e ela pu­la com de­se­jos incontrolá­veis de vi­da. Ja­cin­to sen­te, ago­ra, o mes­mo ins­tin­to de so­bre­vi­ver. Se­gu­ra for­te o bra­ço da mãe, es­que­cen­do as lem­bran­ças, os re­mor­sos, os so­nhos im­pos­sí­veis, com os olhos sem traje­tó­ria e sem sen­ti­dos. Quan­do o pri­mei­ro ves­tí­gio bran­co da en­fer­mei­ra atra­ves­sou a por­ta e se in­crus­tou nas re­ti­nas da mãe de Ja­cin­to, o úl­ti­mo fio da vi­da de­le des­ceu pe­la ca­dei­ra, não passeou pe­lo cor­re­dor do hos­pi­tal, fu­giu da fi­la do ba­nhei­ro e se es­pa­lhou em gran­de quan­ti­da­de pe­lo as­so­a­lho da sa­la. Sem gri­to de dor, Ja­cin­to deu o der­ra­dei­ro sus­pi­ro com na­tu­ra­li­da­de e aper­tou com mais for­ça o bra­ço gor­do que o en­vol­ve. Afrou­xou pou­co a pou­co, dei­xan­do mar­cas ro­xas que se lim­pa­ram em mo­men­tos, de­sa­pa­re­cen­do na fla­ci­dez da gor­du­ra do bra­ço ma­ter­no. A mãe le­van­tou-se e er­gue Ja­cin­to nos bra­ços, com es­for­ço, e o car­re­ga com di­fi­cul­da­de em direção à sa­í­da. Um cor­po frá­gil, in­sen­sí­vel, sem vi­da, frio. A mo­ça da re­cep­ção se so­bres­sal­ta e diz:


— Do­na, vol­ta!


Ela na­da res­pon­de e nem se vol­ta. Sai à rua e o im­pac­to do sol en­tra em seus olhos, ilu­mi­na o ves­ti­do azul e pe­ne­tra em seu co­ra­ção, ex­plo­din­do-o.




*Ronaldo Cagiano é escritor.

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